Na Grécia Antiga, era preciso que as mulheres fossem propriedade do pai e, mais tarde, do marido para serem reconhecidas como indivíduos tanto pelo Estado como pela própria sociedade. Milênios se passaram e, com as incontáveis voltas que o mundo deu e à custa de muitas bandeiras agitadas, elas começaram a gradativamente ganhar espaço. No século XIX, as mais abastadas já podiam escolher com quem iam se casar, um passo em prol da liberdade que, após a II Guerra, se acentuou com o início de seu ingresso no mercado de trabalho. Um ponto de inflexão nessa tão longa estrada veio na esteira dos efervescentes anos 1960, com o advento da pílula anticoncepcional. E daí em diante as conquistas se aprofundaram, em um avanço civilizatório notável, porém ainda em marcha.
Era de esperar que a mudança do papel feminino fizesse chacoalhar o universo masculino, promovendo novas dinâmicas familiares e mais relacionamentos fincados sobre os saudáveis alicerces da igualdade. Toda essa transformação em relativamente pouco tempo, do ponto de vista histórico, pôs muitos homens a refletir e a rever valores, um desdobramento previsível e mais do que bem-vindo. Mas, em meio a ele, começaram a brotar execráveis manifestações do mais puro machismo — como nos anos 1980, nos Estados Unidos, com o Backlash, movimento que questionava se a autonomia delas não teria ido “longe demais”. Felizmente não vingou, embora filosofias retrógradas continuassem a pipocar, emitindo um sinal de que muita gente não queria virar a página do atraso. Passadas algumas décadas e sob o impulso das redes, uma nova e inaceitável iniciativa de cunho misógino reverbera planeta afora sob o nome Red Pill, cuja hashtag alcançou inacreditáveis 44 bilhões de visualizações.
Em português, a pílula vermelha faz alusão ao filme Matrix, de 1999, em que o protagonista tem diante de si dois caminhos: tomar a versão azul e seguir em seu mundo de ilusões ou justamente optar pela vermelha, que lhe trará a compreensão nua e crua da realidade. E, para os integrantes do Red Pill, autointitulados coaches ou influencers da masculinidade, o cenário de hoje, que enxergam “com consciência e sem firulas”, é injustamente dominado pelo sexo oposto. O mais espantoso é que eles tenham tamanha audiência e consigam disseminar livremente o seu manual não só nas mais conhecidas redes sociais (que justificam não os banir por não considerar que eles espalhem o ódio) mas também em cursos, palestras e livros, como o Antiotário, de Rafael Aires, um dos expoentes brasileiros dessa turma de mente reacionária.
Segundo sua assustadora cartilha (veja amostras), as mulheres os manipulam o tempo todo para dominá-los e sua palavra vale mais em um planeta tomado pelo feminismo. Eles elencam uma série de regras para o convívio nesta sociedade deformada. A parceira perfeita seria aquela de perfil obediente, que entende o homem como o chefe da casa, não usa roupas curtas e exala delicadeza, um mergulho no túnel do tempo recheado de preconceito e sustentado pela face mais perversa do conservadorismo. Elas também não podem ter filhos nem ser divorciadas, muito menos defender ideais de igualdade. “A população feminina é o grande motor da modernidade, colocando abaixo valores e costumes antiquados e naturalmente gerando incômodo nos homens, que agora precisam se reposicionar”, analisa a socióloga Isabelle Anchieta.
No Brasil, o Red Pill ganhou holofotes depois que um dos maiores influenciadores nacionais do movimento, Thiago Schutz, 34 anos, passou a ocupar as páginas policiais após ameaçar uma humorista que havia postado um vídeo ironizando seu intragável ideário. “Você tem 24 horas para apagar seu conteúdo sobre mim. Depois disso, é processo ou bala”, escreveu Schutz em uma mensagem enviada à comediante Livia La Gatto. A artista não se calou e registrou um boletim de ocorrência. “O discurso do Thiago, como o de tantos outros, pode soar apenas ridículo e risível, mas é essencialmente a manifestação de um ódio de gênero”, falou Livia a VEJA. Com a repercussão da história, outras pessoas relataram ter recebido recados de conteúdo parecido com o daquele enviado por Thiago. “Gente como ele não quer nada além de manter o status quo tradicional, retaliar o avanço dos direitos adquiridos pelas mulheres e, em alguns casos, pior ainda, fomentar a violência”, avalia a advogada Ana Paula Braga, da Universidade de São Paulo.
O abecedário que encaixou os homens em perfis, como o alfa (o dominador, aquele que está no comando e gosta de exibir força) e o beta (tipo que fala dos sentimentos e compartilha tarefas domésticas), agora se volta para os sigmas, que cultuam o corpo, se apresentam com alta capacidade intelectual, mas são mais reservados e solitários. Uma das citadas inspirações desse grupo vem do personagem Patrick Bateman, interpretado por Christian Bale em Psicopata Americano, de 2000, um empresário sempre bem-vestido, que cultiva uma aura de mistério e leva vida dupla como assassino nas madrugadas de Nova York. Cunhado pelo ativista da extrema direita americana Theodore Beale, em 2010, o termo sigma ajuda a definir o exército virtual que toca globalmente o Red Pill. “Eles são um clássico exemplo dos conservadores conspiracionistas. Assim como há quem acredite em tramas para acabar com o Ocidente, os red pills têm certeza de que o feminismo quer extinguir a masculinidade”, explica o filósofo Aldo Dinucci, da Universidade de Kent, no Reino Unido.
Nas redes, esses disseminadores de preconceitos empregam um emoji de taça de vinho acompanhado de uma escultura Moai, da Ilha de Páscoa, como marca registrada. Para eles, esses gigantes monumentos trazem traços masculinos a ser cultuados, como a mandíbula bem torneada e o queixo protuberante. Muitos enveredam pela filosofia Men Going Their Own Way (algo como homens seguindo seu próprio caminho), que aplicam nos relacionamentos, pouco ou nada relevantes, já que as mulheres podem virar um “entrave” para seu sucesso. Um dos rostos mais conhecidos do movimento é o do empresário americano Andrew Tate, que chega a levantar a bandeira de que mulheres são propriedade masculina e, também ele, virou assunto de polícia. Atualmente, está preso na Romênia, acusado de exploração e escravização sexual.
Os representantes do Red Pill sistematizam seu modo de viver em dicas sobre como ser atraente, tratar a mulher no primeiro encontro (“pagar a conta, nem pensar”) e viver como um “homem de valor”. Para uma ala desses ditos coaches, tais conselhos se converteram em negócio, como ocorreu com o paranaense João Gabriel Mendes, 30 anos. Ele promete ensinar a “dominar o jogo dos relacionamentos” e a “entender a cabeça das mulheres” em um guia vendido a 97,90 reais. Em sua distorcida visão, que é a defendida por seus semelhantes, a igualdade de gênero já foi alcançada e, hoje, são as feministas as responsáveis por propagar ódio contra a população masculina. “Devemos seguir os papéis naturais, com a mulher exercendo seu dom de ser mãe, de cuidar, ser meiga e zelar, e o homem, o de guiar e ser a base do lar”, diz, como se o mundo à sua volta não tivesse se movido um milímetro e passado por uma tremenda revolução. “Vemos hoje uma crise da masculinidade. Aqueles que não sabem lidar com a autonomia feminina e as transformações sociais recorrem ao machismo para reafirmar sua virilidade”, observa a psicanalista Regina Navarro Lins. Como se vê, a red pill não passa de uma amarga pílula do retrocesso.
Publicado em VEJA de 15 de março de 2023, edição nº 2832