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“Medusa não é monstro, é uma sobrevivente”, diz popstar de estudos gregos

Natalie Heynes lança seu primeiro livro no Brasil e recupera a história de dez mulheres mitológicas que passaram por um longo processo de deturpação

Por Marília Monitchele Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 15 ago 2023, 07h00

Depois de ser elogiada por nomes como Neil Gaiman e Madeline Miller, além de conquistar uma  posição na disputada lista de best-sellers de não-ficção do New York Times, Natalie Heynes finalmente desembarca no Brasil. A escritora, historiadora da arte e comediante, lança aqui seu primeiro livro traduzido para o português: O Jarro de Pandora (Cultrix), em que, como de praxe, se debruça sobre os mitos gregos com bom humor e precisão. 

A famosa Pandora, por exemplo, nunca teve uma caixa apocalíptica, Helena de Tróia não foi somente uma adúltera e Medusa, uma injustiçada, estava longe de ser o monstro temido dos mitos gregos. Apesar disso, essas figuras têm algo em comum: elas, assim como muitas outras, tiveram suas narrativas deturpadas ao longo do tempo. 

Com isso em mente, Heynes resgata o legado de dez mulheres cujas histórias foram apagadas, esquecidas ou distorcidas, e dá espaço para que essas figuras não sejam vistas apenas como vilãs ou mocinhas, mas como mulheres que sofreram um lento processo de difamação, acomodação e machismo. Em conversa exclusiva com VEJA, a autora refletiu sobre as escolhas feitas em seu livro, a forma como essas mulheres são vistas ao longo da história e o impacto que a escrita dessas biografias tiveram sobre ela mesma. 

Considerando que a história e a mitologia grega estão repletas de mulheres interessantes, por que essas dez mulheres específicas ganharam destaque no seu livro? 

Algumas vezes tiveram bons motivos, outras foi só porque eu queria. Essa é a verdade! [risos] Eu tive que fazer Pandora porque ela era o título do livro e também porque ela é a primeira mulher. Seria estranho fazer um livro sobre mulheres na mitologia grega sem falar da primeira delas. Tinha, naturalmente, a mulher mais famosa da Grécia: Helena de Tróia. Então, eu tinha que mencioná-la. Eu também senti que devia misturar mulheres frequentemente consideradas vilãs, como Clitemnestra, com mulheres frequentemente consideradas virtuosas, como Penélope, e mostrar que ambas as interpretações são prisões para essas mulheres. Nenhuma olha para elas como figuras complexas e essa  perspectiva não me parecia muito atraente, então eu quis atravessar esses estereótipos. As amazonas, por exemplo, eram muito populares na arte grega antiga, especialmente nas artes visuais, mas eu percebia que elas não eram muito consideradas hoje e pensei: quer saber, vamos fazer algo sobre isso. Então, algumas vezes houve uma tentativa deliberada de criar uma espécie de equilíbrio interpretativo, mas em outras eu só pensava: eu realmente quero escrever sobre isso. Mas você tem razão, poderiam ser outras personagens. Por esse motivo, continuo revendo o que sabemos dessas mulheres nos meus trabalhos. Em breve lanço aqui [no Reino Unido] um sequência para o Jarro de Pandora, agora focada em deusas, ninfas e outras criaturas mitológicas femininas. 

No seu livro há uma crítica contundente à forma como algumas mulheres foram interpretadas ao longo da história. Por que você acha que esses personagens sofreram tamanha distorção? O que levou a interpretações tão diferentes de quem elas realmente eram? 

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Algumas vezes é possível mapear o que acontece com essas histórias. A história de Pandora é um bom exemplo disso, porque ela é uma figura com mais nuances nas representações gregas antigas do que ela se torna depois. Está claro que o problema, no caso de Pandora, é que sua história se mistura com a de Eva, da interpretação bíblica. Mas, enquanto Eva definitivamente come a maçã, nas fontes antigas, Pandora nunca tem uma caixa. Às vezes ela tem um jarro, mas nem sempre. Nas representações visuais, ela nunca tem nenhum tipo de receptáculo, nem caixa, nem jarro, nada. Ela sempre é mostrada no ato de sua criação. Ou seja, o que era importante para os antigos gregos era o fato de Pandora ter sido a primeira mulher, e nós sermos descendentes dela. Mas eis que entra a história de Eva, onde a linda primeira mulher da criação é responsável pelo fim do paraíso, e a história de Pandora acaba engolida. 

JARRO DE PANDORA: Primeiro livro de Natalie Heynes no Brasil resgata a história de dez mulheres que passaram por um longo processo de deturpação -
JARRO DE PANDORA: Primeiro livro de Natalie Heynes no Brasil resgata a história de dez mulheres que passaram por um longo processo de deturpação – (Editora Cultrix/Divulgação)

O gênero é uma atributo para essas distorções? 

Nem sempre é uma questão de gênero. Acho que se eu perguntasse para 100 estudiosos clássicos quem foi o sobrevivente do grande dilúvio, 99 deles diriam Noé e apenas um diria Deucalião. Às vezes, o mito grego perde porque a Bíblia é muito lida ou acontece de uma tradição patriarcal diferente assume o controle. Às vezes é apenas má sorte. O Cristianismo é uma religião que se espalha muito rápido e sua visão das mulheres nem sempre é particularmente gentil. 

Com as discussões atuais sobre feminismo e papéis de gênero, você acredita que esses personagens podem finalmente receber justiça em suas representações?

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Nunca é tarde demais! Há muito tempo e muitas oportunidades de avaliar essas mulheres sob diferentes pontos de vista.  Eu acho importante ter em mente que existe muita arte sobre essas mulheres, muitas delas com um olhar machista. Isso não significa, porém, que esses registros não valem nada e devem ser desconsiderados. Significa que temos que olhar essas produções de forma crítica. Existem muitos trabalhos atuais fazendo isso, mas em diálogo com o trabalho que existe há milênios. Luciano Garbati, por exemplo, criou sua versão de Medusa, uma versão que subverte a do Perseu Triunfante de Antonio Canova. A versão de Garbati mostra Medusa nua e vitoriosa segurando a cabeça decapitada de Perseu. É uma imagem profundamente chocante, mas a original também é, apenas nos esquecemos disso porque ela tem 222 anos. Eu espero que possamos olhar para toda essa arte e perceber que ela pode ser mais interessante se fizermos perguntas mais críticas sobre ela. Não é uma questão de descartar uma categoria ou ignorar outra, mas apenas de dizer: “bem, o que acontece se olharmos para tudo isso, para todas essas interpretações, de forma crítica?”.  Isso não está limitado ao gênero, Luciano Garbati é obviamente um homem, mas deu uma resposta artística interessante a séculos de representações misóginas da Medusa. 

A Medusa também parece ser um personagem especialmente simbólico para você.

Eu quis escrever sobre a Medusa porque achei a história dela a mais extraordinária: o primeiro monstro sobrevivente de um estupro. Medusa é uma mulher que sobrevive a uma agressão sexual, mas é literalmente transformada em monstro por aquela sociedade. Me pareceu atual e tentador escrever sobre isso. Eu fiquei realmente irada por tudo que ela passou. Por isso ela se tornou o tema do meu último livro: Stone Blind, a Novel, que espero que chegue ao Brasil em breve. A história dela me afetou profundamente. Recentemente, eu estava em turnê com esse livro e soube de um fato terrível, que me deixou muito abalada. Eu tive contato com muitas mulheres e um número considerável tinha uma tatuagem da Medusa, e eu fiquei sabendo que o que motivava esse tipo de tatuagem era o fato dessas mulheres terem sobrevivido a agressões sexuais. Esse é um tipo diferente de arte, não é algo para um público vir e olhar. É algo que uma pessoa usa para lembrar quem é, o que aconteceu com ela e como ela sobreviveu a isso. É uma resposta artística igualmente potente a uma história de representação patriarcal. Testemunhar o surgimento de uma arte como resposta a essa dor é algo extremamente comovente para mim. 

No Brasil, Chico Buarque, um dos maiores representantes da nossa música, escreveu uma canção chamada “Mulheres de Atenas”. Nela, ele sutil e ironicamente critica as relações de gênero e noções como supremacia masculina, submissão feminina e domesticidade. Se você pudesse conversar um pouco com o Chico sobre essas mulheres de Atenas tendo como base o que você traz em seu livro, como seria essa conversa? 

Eu acho que teríamos uma ótima conversa [risos]. Acho que concordamos que muitas vezes o que a sociedade espera das mulheres é um papel de cuidado, que vem sem pagamento e sem status. Quando a frase “trabalho de mulher” é usada, ela raramente significa algo tão incrível que apenas uma mulher poderia fazer, geralmente significa algo que o falante não gosta e não quer fazer, como cuidar de crianças, de pessoas que precisam de assistência física. Nunca um “trabalho de mulher” é algo incrivelmente poderoso, com um alto salário e alto status. Olhando para isso hoje, eu diria que meus amigos da Grécia Antiga diriam que o patriarcado está indo muito bem, obrigada. Eles ficariam muito felizes em ver que esse velho conhecido continua caminhando pela história. 

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Minha experiência mostra que mulheres, na Grécia Antiga e hoje, são guerreiras que nunca param de lutar. Acho que Chico e eu provavelmente concordaríamos que as mulheres guerreiras foram empurradas para as cozinhas, para cozinhar, consertar e limpar por mais tempo do que o aceitável. Isso não significa dizer que essas funções não sejam necessárias. Todos nós precisamos, não apenas de casas limpas, mas de hospitais limpos, locais de trabalho limpos. Não há nada de errado com esses empregos, mas eu gostaria que as mulheres tivessem mais poder para escolher os trabalhos que desejassem, seja cuidar de alguém ou assumir um trabalho de liderança, e que não se sintam obrigadas a assumir essas responsabilidades domésticas. Acho que o que mais importa é a escolha, não a escolha que você faz, mas o fato de você ter uma escolha.

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