Reduzir a quantidade de tecido em saias, calças, blusas e vestidos está, desde sempre, entre as mais genuínas expressões de sensualidade feminina. Nos desfiles das coleções de verão 2023, a primeira temporada de calor efetivamente livre da pandemia (embora o vírus continue no ar), a extensão de pele em evidência está sendo vista como uma espécie de celebração do corpo. Decotes profundos e fendas ousadas se multiplicaram nas passarelas de grifes como Dior, Alexander McQueen, Louis Vuitton, Burberry e Saint Laurent, e das nacionais À La Garçone e Lenny Niemeyer. Imbuídas do mesmo espírito, celebridades e influenciadoras, antes mesmo do aval dos estilistas, já vinham usando e abusando dos decotes abissais e dos recortes estratégicos, no limite do permitido pela moral e pelos bons costumes. A atriz e cantora Jennifer Lopez, a modelo Izabel Goulart e as influencers americanas Kylie Jenner e Hailey Bieber não perdem a chance de ousar, da mesma forma que as atrizes brasileiras Marina Ruy Barbosa, Bruna Marquezine e Deborah Secco. A cada nova aparição, partes menos óbvias do corpo são reveladas, fazendo entrar em ebulição os comentários contra e a favor nas redes sociais.
Mestre dos recortes e autor de aberturas inesperadas que expõem o quadril, mantendo as pernas cobertas, o estilista Riccardo Tisci, da Burberry, é o mais celebrado desta nova era. “Após quase três anos de pandemia, é forte o desejo de colocar o corpo em evidência”, justifica o stylist Dudu Farias, que cuida do visual da modelo Renata Kuerten e da apresentadora Rafa Brites. Faz sentido: depois de tantos meses fechadas em casa, de moletom e camiseta, as pessoas sentem necessidade de valorizar as formas e despertar seu lado sexy.
Vêm daí os decotes e recortes que fazem a marca do verão, ao lado de transparência à vontade e de saias e vestidos curtíssimos. A moda, como se sabe, é um espelho das aspirações coletivas. E o que a tendência fashion atual está dizendo é que, além do exercício prazeroso do jogo do mostra-esconde, há uma mensagem de libertação na pele de fora: a de que a mulher pode usar o que quiser, do jeito que desejar.
Foi longo e cheio de percalços o caminho do decote, desde os primórdios das vestimentas femininas até aqui (tirando as dançarinas de tango, as fendas são um fenômeno mais recente). As primeiras informações dão conta de que ele teria aparecido na Grécia Antiga, na ilha de Creta, para facilitar a amamentação. Aos poucos, foi sendo aceito como um respiro nas pesadas roupas que cobriam a silhueta do pescoço aos pés na Idade Média, sem espaço para um relance de tornozelos. A décolletage (o termo foi cunhado na França) conquistou, porém, seu lugar de honra quando um ar de renovação varreu os bailes da Corte, trazendo novas danças — e decotes cada vez mais profundos. Ficaram famosos os modelos usados pelas damas francesas na Corte do rei Luís XVI, a começar pelos exibidos por sua mulher, Maria Antonieta. Quatro séculos depois, o decote se aprofunda como nunca, fazendo par com as fendas, celebrando a autoestima e a liberdade femininas.
Publicado em VEJA de 21 de dezembro de 2022, edição nº 2820