Crise e mudanças nos hábitos elevam a idade dos veículos no Brasil
O fenômeno traz preocupações ambientais e de segurança
Durante um périplo pela Europa, em 1990, Fernando Collor de Mello causou certa indignação ao dizer que “comparados aos carros do primeiro mundo, os brasileiros são verdadeiras carroças”. O presidente, que deixaria o cargo dois anos mais tarde em um rumoroso processo de impeachment, tinha razão: a maioria dos veículos estava obsoleta e uma política de abertura à importação era mesmo necessária ao país. Três décadas depois, a declaração de Collor, quem diria, volta a ecoar na indústria automotiva nacional. Em meio à crise econômica e à queda de renda, o Brasil depara com números preocupantes sobre o envelhecimento da frota.
Diversas razões explicam o fenômeno, sendo a mais visível o aumento do preço dos carros zero-quilômetro. Atualmente, os modelos mais baratos do mercado, o Fiat Mobi e o Renault Kwid, não saem por menos de 60 000 reais. As SUVs, queridinhas dos brasileiros, superam a marca dos 100 000 reais. Por esse motivo, comprar seminovos ou manter os atuais, ainda que velhos e desgastados, é uma opção cada vez mais comum. Um estudo do Sindicato Nacional da Indústria de Componentes para Veículos Automotores (Sindipeças) mostra que, em dez anos, o número de carros novos caiu quase pela metade e aqueles com tempo de uso entre seis e quinze anos subiu de 38,1% para 57,1% (veja o quadro). “Uma frota envelhecida causa problemas ao meio ambiente, aumenta os acidentes e prejudica o trânsito”, alerta Flávio Padovan, sócio da MRD Consulting, especializada no ramo automotivo.
O avanço da idade média dos veículos — de oito para dez anos entre 2012 e 2022 — é resultado de um movimento que começou quase uma década atrás. Em 2013, melhor ano da história da indústria, o Brasil produziu 3,6 milhões de automóveis e comerciais leves e a expectativa era chegar a 5 milhões em um futuro próximo. No entanto, os sacolejos na economia de 2014 a 2016 e, mais adiante, os efeitos da pandemia frearam a euforia. Fábricas foram fechadas, cadeias de suprimento acabaram rompidas — projeções indicam que só deverão se recuperar plenamente em 2025 — e, sobretudo, o poder de compra dos brasileiros caiu. Assim formou-se a tempestade perfeita que desabou sobre o setor.
O cenário é de fato alarmante, segundo reforçam recentes estatísticas. Quase metade dos 46,6 milhões de veículos que compõem a frota nacional foi produzida antes de 2013, ou seja, em um período anterior à implementação de leis de redução de emissão dos gases de efeito estufa. Automóveis antigos, ressalte-se, poluem mais e, claro, estão sujeitos a variados problemas de manutenção. Diante de tais efeitos colaterais, George Rugitsky, diretor de economia do Sindipeças, defende a adoção de rígidos programas de inspeção veicular: “A medida teria um custo adicional insignificante perto dos riscos que evitaria”, diz. O especialista acredita que carros eletrificados serão um produto de nicho por um bom tempo, em razão dos altíssimos valores envolvidos, e aposta em veículos híbridos a etanol como a solução mais sustentável à mão. O programa de renovação da frota de caminhões e ônibus, anunciado pelo governo federal e ainda não regulamentado, também poderia ajudar.
A crise econômica e as relevantes mudanças nos hábitos de consumo, como o desinteresse das novas gerações por carros, têm tudo para desembocar em um quadro inédito. Nos últimos dois anos, a indústria cresceu só 0,7% e as vendas, abaixo do esperado nos primeiros meses de 2022, abrem a possibilidade de redução da frota, algo que jamais ocorreu na história deste país. “O Brasil não retomará o efervescente patamar de 2012 antes de 2032”, prevê o consultor da Bright Consulting, Cássio Pagliarini. Tudo do que o meio ambiente não precisa é a volta das famigeradas carroças.
Publicado em VEJA de 22 de junho de 2022, edição nº 2794