Na Antiguidade, manuscritos persas e assírios já mencionavam a retirada de bebês pela via abdominal. As primeiras evidências de que o procedimento havia sido assimilado por lei, então com o único propósito de salvar fetos, estão registradas em documentos da Babilônia (1795-1750 a.C.). Sabe-se ainda que, um milênio mais tarde, os romanos até proibiam funerais de gestantes sem que antes se retirasse a criança do ventre. Os pequenos sobreviventes eram chamados de césares, de onde se acredita ter originado o termo cesariana — que viria a se aproximar da cirurgia tal qual a conhecemos apenas no século XVI. A pioneiríssima operação, realizada na Suíça, foi executada pelo próprio marido, acompanhado de uma dezena de parteiras, com o objetivo de aliviar o sofrimento da mulher, que penava para dar à luz. No Brasil, a primeira intervenção do gênero data de 1822 e, daí em diante, o método criado como exceção, para casos de flagrante risco à mãe e ao bebê, foi sendo absorvido no caldo de cultura local. Hoje, a opção pela cesariana tomou, segundo especialistas, a forma de “uma epidemia”.
Os mais recentes dados do Ministério da Saúde revelam um recorde histórico de cesáreas no país: do total de partos em 2022, 57,7% seguiram o caminho do bisturi, fatia que vem subindo ao longo dos anos (quando no mundo ideal deveria encolher). Ela é quase quatro vezes o que recomenda a OMS (15%), um rol no qual, de acordo com a organização, deveriam constar apenas mulheres que realmente necessitam da intervenção. Com tão elevado patamar, o Brasil é vice-campeão nessas operações — são mais de 1 milhão delas por ano —, só perdendo para a República Dominicana, que crava 58% dos partos feitos à base de cirurgia (veja o quadro).
Cutucar o assunto sempre acende as labaredas de uma discussão que é para lá de polêmica, já que toca em uma das mais íntimas escolhas individuais de cada mulher. Mas, sendo uma questão essencial à saúde feminina, cabe pôr à mesa relevantes ponderações médicas, fruto do conhecimento científico. “A cesariana não pode ser demonizada, pois salva vidas, mas é preciso ressaltar que é um tipo de parto que contém mais riscos e, portanto, deve ser realizado em situações nas quais os minimize, e não os faça crescer”, alerta o médico Ricardo Tedesco, da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia.
Muitos fatores pesam para que tantas brasileiras evitem o parto normal. Entre os mais mencionados está o conforto proporcionado pela previsibilidade — marcar dia e hora para o nascimento ajuda a aplacar a ansiedade. Uma parcela das mulheres nem cogita esperar os sinais de estar na hora de o bebê nascer. Pesquisas também mostram que uma ala da turma que prefere a cesárea cultiva a ideia de que a cirurgia é a alternativa mais segura em qualquer situação e ainda manifesta preocupação com a vida sexual após ter o filho pela via natural. Nenhuma justificativa, porém, supera o medo, às vezes pavor, da dor. “Desde que planejei ser mãe, sabia que queria a cesariana. Sentir dor não é para mim”, assume a fisioterapeuta Camila Freitas, 35 anos, mãe de Maria, 1 ano e 8 meses. Nem sempre a escolha é bem digerida pelo mundo em volta, e as críticas aparecem, como as que pesaram sobre os ombros da publicitária Gabriela Cordeiro, 35. Ela conta não ter sequer avaliado a hipótese de entrar em trabalho de parto. “Sabia que a recuperação poderia ser mais incômoda. Sou uma pessoa prática”, justifica a mãe de Bella, 8 meses.
Diante da avalanche de cesarianas, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), ligada ao ministério, acaba de lançar uma campanha para difundir boas práticas no cuidado com as grávidas e reduzir as cirurgias quando elas não se justificam medicamente. “A mulher tem total direito sobre seu corpo, mas faltam informações que podem ser esclarecedoras no momento da escolha”, avalia a obstetriz Ana Cristina Duarte, coordenadora do Coletivo Nascer, que apoia o parto normal. Estudos apontam que o risco de óbito materno é duas vezes maior entre mulheres que optam pelo bisturi, sem falar na ocorrência de hemorragias e infecções. Os bebês, por sua vez, têm mais chances de problemas respiratórios e de desenvolver diabetes, hipertensão e obesidade.
Como em todo dilema, uma parcela das que enveredam pela trilha cirúrgica acaba por se arrepender. “Não precisava ter feito. Quase desmaiei de dor no pós-operatório, minha filha nasceu pequenininha, e eu me senti egoísta”, relata Stephanie Ventura, 36, mãe de Maitê, 1 ano. À frente do estudo “Nascer no Brasil”, a pesquisadora da Fiocruz Maria do Carmo Leal observa a banalização das cesáreas. “Ao longo do tempo, as brasileiras deixaram de enxergar o recurso como uma cirurgia de médio porte para encará-lo como uma simples opção ao parto normal”, diz. Desde a década de 70, quando as cesarianas correspondiam a 15% dos partos no Brasil, a taxa cresce. Nos anos 2000, ela cruzou uma fronteira simbólica, chegando a mais da metade dos nascimentos no país (veja o quadro).
Os grandes números espelham a força de uma engrenagem que favorece a explosão de cesarianas. É quase impossível nos dias de hoje encontrar um obstetra de plano de saúde que aceite fazer parto normal sem cobrar uma “taxa de disponibilidade” pela espera — algo entre 10 000 e 25 000 reais. Para eles, que atualmente recebem das operadoras de saúde quantia semelhante nos dois tipos de parto, é mais vantajoso operar três, quatro mulheres em sequência do que passar doze horas às voltas com um nascimento. “Alguns profissionais, como é bem sabido, influenciam suas pacientes a encarar a cirurgia, alimentando a indústria da cesárea”, afirma Ana Cristina Duarte. Na rede pública, onde a mulher a partir da 39ª semana de gestação pode escolher entre um e outro procedimento, é uma questão de cunho cultural que as faz pender para a cirurgia. “A experiência do parto vaginal no Brasil é marcada por intervenções desnecessárias e violentas, o que sedimentou uma ideia negativa sobre ele”, explica Simone Diniz, da Faculdade de Saúde Pública da USP.
A porção desenvolvida do planeta é a que se situa mais próxima da faixa ideal da OMS, como a Suécia, que tem índice de cesarianas de 16,6%, enquanto nos Estados Unidos são 32%. A praxe nesses países é que o nascimento fique a cargo dos profissionais de plantão e nem se indague a gestante sobre sua preferência — o entendimento unânime é de que o parto seja normal, a menos que se apresente complicação que lance risco sobre a mãe ou o bebê. Isso desonera o sistema público de saúde e diminui as curvas de indesejadas ocorrências nesse momento tão tocante e delicado na vida de uma mulher. Que a opção de cada uma leve em conta a voz da ciência.
Colaborou Duda Monteiro de Barros
Publicado em VEJA de 1º de março de 2023, edição nº 2830