Carnaval turístico do Rio também nasceu da luta política dos sambistas
'Modernidade Negra na Praça Onze' investiga as articulações por trás da festividade
O Carnaval turístico no Rio de Janeiro, desde o início dos anos de 1930, foi uma articulação política que envolveu diversos setores, incluindo a imprensa e as agremiações carnavalescas, o mercado de turismo e o Estado. Essa é uma das conclusões de pesquisa da doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF) Fabiana Martins Bandeira. “Essa disputa aconteceu em torno de qual seria o Carnaval turístico”, explicou Fabiana.
Ela é responsável pela pesquisa intitulada Modernidade Negra na Praça Onze: escolas de samba, ação política e a construção do Carnaval turístico, que destaca a ação política das escolas de samba ao longo de todo o processo que se inicia em 1932, no primeiro desfile na Praça Onze, e vai até 1948, abrangendo o período do pós-guerra.
“Elas lutaram, através dos seus desfiles, por maior acesso à cidadania e o reconhecimento do valor do samba das escolas de samba para a formação da brasilidade e o reconhecimento do valor do desfile para o crescimento desse carnaval político”, disse em entrevista à Agência Brasil.
Como isso ganhou evidência?
De acordo com Fabiana, há o entendimento de que foi uma ação política, que ficou mais evidente no pós-guerra, com a consciência do apoio dos sambistas para as eleições, em especial nos anos de 1945 e 1947, quando as escolas de samba atuaram diretamente nas campanhas políticas, com algumas lideranças sendo alvo de repressões e perseguições no governo de Eurico Dutra, principalmente após sua aproximação com o Partido Comunista do Brasil (PCB).
Durante a guerra, as escolas cantaram sambas de apoio ao soldado combatente, sambas contra o nazifascismo. “Tudo isso foi mostrando que, mais do que simplesmente ter o direito de desfilar, era, também, o direito de ser reconhecido como cidadão, como brasileiro, e ter o samba de morro, como a imprensa chamava na época, reconhecido como um grande valor cultural para o país.”
Boa parte da tese de Fabiana se concentra no período do Estado Novo de Getúlio Vargas. Foi quando ela observou o maior movimento de mostrar o samba no exterior e trazer também estrangeiros para verem o samba, como parte da política da boa vizinhança com os Estados Unidos. Em algumas agremiações, ocorreram visitas importantes, como a do diretor Walt Disney, que esteve na Portela, em 1941; e do diretor de cinema Orson Welles, em 1942, que participou do Carnaval na Praça Onze e tentou fazer um filme sobre a festa.
Que contradições a pesquisa mostrou?
Ao mesmo tempo que o Carnaval de rua popular e os desfiles das escolas de samba mostram a relação entre brasilidade e samba, o Estado brasileiro poucas vezes, naquele momento, associou isso ao sambista negro morador dos morros e subúrbios do Rio.
“Acho que a maior contradição que eu observei nesse período do Estado Novo e da política da boa vizinhança é sobre a identidade racial brasileira”, diz Fabiana. “De um lado, o samba vai sendo elevado no discurso da grande imprensa como representativo de uma suposta democracia brasileira e de uma suposta harmonia racial brasileira, que a gente sabe que é mito. Naquele período, o samba servia a esses propósitos da propaganda.”
Segundo a pesquisadora, foi na gestão de Henrique Dodsworth como prefeito do então Distrito Federal que as negociações das agremiações das escolas de samba com o Estado ficaram mais dificultadas, com o governo tentando se apropriar da recém-construída Avenida Presidente Vargas, espaço importante para a cultura popular. Simultaneamente, intensificavam-se as perseguições policiais e as regras eram cada vez mais rígidas para o Carnaval de rua, enquanto havia incentivo para o Carnaval interno de bailes em cassinos luxuosos e hotéis na orla de Copacabana.
Como as escolas passaram por cima?
As agremiações de samba acabaram se organizando em associação e estabeleceram uma espécie de pacto político com o Estado para que essas comunidades tivessem algum benefício. Durante a prefeitura de Pedro Ernesto, antes do golpe de Estado, o pacto político começou a ser construído, com a inauguração, em janeiro de 1936, da Escola Municipal Humberto de Campos, na Mangueira, primeira unidade de ensino aberta em uma comunidade. Já a partir do Estado Novo, esse pacto político vai sendo rompido.
Atualmente, o Carnaval carioca se consolidou como um negócio, além de ter se tornado um grande momento de arrecadação para o Estado. O evento também se estabeleceu como mercado de trabalho para muitas pessoas, que se dedicam o ano inteiro para colocar as escolas de samba na avenida, na visão de Fabiana.
Embora nos últimos anos a intelectualidade negra tenha ganhado espaço, a pesquisadora entende que ainda há uma permanência do racismo em muitos discursos da imprensa, principalmente pela mentalidade persistente na história recente que relaciona a figura do carnavalesco a um intelectual branco, oriundo da academia, considerado por muitos como mente criadora nas escolas de samba, deixando na invisibilidade os artistas das próprias agremiações que trabalham para a realização do Carnaval.
(Com Agência Brasil)