A ideia do amor romântico, calcada no disseminado conceito da cara-metade, em que uma parte se funde harmoniosamente à outra formando uma só, vem permeando as sociedades ao longo dos tempos. Sua semente foi plantada em um passado medieval, lá pelo século XII, quando as uniões unicamente por conveniência se somaram àquelas movidas por sentimentos genuínos, paixões às quais os trovadores deram voz. Desde aí, o mundo girou de forma revolucionária, registrando avanços notáveis no campo dos enlaces afetivos, no qual passou a caber um vasto leque de arranjos — entre eles, o relacionamento aberto, em que os pilares da monogamia e da fidelidade são postos de lado enquanto a liberdade de dar vazão ao desejo entra em cena. À primeira vista, pode soar como uma trilha na direção de mais franqueza, e assim é para muita gente. Mas a equação que se põe à mesa da modernidade não é nada simples para quem embarca nesse tipo de relação, trazendo uma sorte de incômodos e dores a quem navega nessas águas.
O debate incendiou as redes recentemente, com o lançamento nos Estados Unidos do livro More: A Memoir of an Open Relationship, logo alçado às prateleiras dos best-sellers. A autora, a professora de inglês Molly Roden Winter, 51 anos, elevou a fervura ao falar com rara honestidade de seu próprio casamento, que já dura duas décadas. Em 2008, conta que se interessou por um homem com quem esbarrou num bar e resolveu dividir a história com o marido, Stewart, de quem se sentia à época afastada. Decidiram então flexibilizar a relação, e isso lhe abriu uma janela para casuais encontros, dos quais não se arrepende. “Estou determinada a fazer o casamento aberto funcionar para dar mais espontaneidade e aventura à minha vida”, afirma Molly, que enfatiza outra face do acerto, esta de menos leveza. Volta e meia, a autora se vê angustiada, insegura e tomada de ciúme e ressentimento. “Tenho medo de me machucar”, admite.
A literatura sobre tão delicado tema mergulha nos desdobramentos da difícil decisão, que vem cercada de conflitos. “Muitas vezes, esse tipo de relacionamento desemboca no temor de ser abandonado ou substituído”, diz a psiquiatra Carmita Abdo, coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Ela, porém, pondera: mesmo com uniões fincadas na monogamia, nada é garantido. Ouvida sobre suas relações abertas, muita gente expressa a dura experiência de ser confrontada com um dos mais humanos dos instintos — o de posse. “Por mais confiante que seja e por mais equilíbrio emocional que alguém tenha, é inevitável não ficar ansioso com a constatação de que o parceiro se relaciona com outras pessoas”, afirma Carmita. O caminho para encontrar paz nesses arranjos, sustentam os especialistas, é manter a conversa sempre acesa. “Precisa haver muita confiança”, resume a filósofa Carina Blacutt, 40 anos e mãe de três filhos, que há dezessete vive um feliz matrimônio aberto com o também filósofo Felipe do Nascimento.
Os conflitos são inevitáveis, mas a turma que insiste em engatar nesse modelo elenca o lado bom, enfatizando como, não raro, o elo com o parceiro se torna mais firme. “Estamos no meio de uma mudança entre antigos e novos valores e, sendo ainda recente, não existem parâmetros bem estabelecidos para os relacionamentos não monogâmicos, o que aos poucos acontecerá”, diz a psicóloga Regina Navarro Lins, autora de livros sobre o assunto. “Só não dá para achar que a fórmula é a resposta absoluta para todas as insatisfações”, afirma. Nessa estrada de casórios e namoros mais livres, criam-se acordos e regras entre quatro paredes. Uma ala prefere não ouvir do cônjuge sobre as experiências fora do casamento, ao passo que outros mantêm tudo às claras. Há uma profusão de variáveis nesse terreno, como bem ilustra a estudante de direito Lara Benevides, 23 anos. “Tive um namorado que não queria que eu me relacionasse com pessoas próximas a ele, e eu entendi e respeitei. O importante é cada um impor seus limites”, diz.
As estatísticas sobre essa fatia da população revelam que, sobretudo os jovens, consideram com cada vez mais frequência o relacionamento aberto — tópico, aliás, que registrou entre brasileiros uma subida de 70% em buscas no Google no último ano. Nos Estados Unidos, 25% dos entrevistados em uma pesquisa do YouGov declaram “estar dispostos” a enveredar por essa trilha, patamar que alcança 31% no Reino Unido, segundo um levantamento do aplicativo de encontros OkCupid. Uma leva dos que já tentaram relata o quão complicado é frear sentimentos que podem aflorar no meio do caminho. No livro, Molly diz ter nutrido uma “paixonite” por um recém-divorciado, que pediu que ela se separasse do marido. O coração balançou, mas ela permaneceu em casa.
Não é sempre que funciona, o que faz muita gente repensar. “Tive relacionamento aberto duas vezes, mas faltava sinceridade. Eles preferiram quebrar acordos a ter uma conversa desconfortável sobre mudar as regras”, relata a advogada Thaís Martins, 30 anos, que aderiu à monogamia. Na ausência de script, vale voltar às raízes do que une duas pessoas revisitando Simone de Beauvoir (1908-1986), que por mais de meio século viveu um intenso e doloroso casamento aberto com Jean-Paul Sartre (1905-1980), filósofo existencialista como ela: “O casal feliz que se reconhece no amor desafia o universo e o tempo”.
Publicado em VEJA de 22 de março de 2024, edição nº 2885