Em reflexão sobre o indivíduo em sociedade, o inglês Francis Bacon (1561-1626), um dos grandes filósofos do pensamento ocidental, foi categórico: “Não há solidão mais triste do que a do homem sem amizades”. A teia de boas relações tecida ao longo de uma vida, como já comprovado pelos vários escaninhos da ciência, tem inestimável valor para a felicidade e o bem-estar das pessoas — um terreno sobre o qual o enriquecimento humano viceja no sentido mais amplo. Não é fácil semear elos firmes e duradouros, mas sabe-se que a trilha envolve costurar afinidades, abrir o peito e deixar o outro enxergar emoções a que poucos têm acesso. Na pressa da era moderna, tão afeita à efemeridade das redes sociais, formar laços que rompam a bolha da superficialidade ganhou complexidade — e essa dificuldade se delineia agora com tintas berrantes na população masculina, tradicionalmente mais refratária a expor sentimentos e fragilidades do que a ala feminina.
Os contornos da doída solidão a que Bacon já se referia tantos séculos atrás foram iluminados em recente pesquisa, que conferiu escala ao incômodo masculino. O vasto levantamento, conduzido pelo instituto Survey Center on American Life, mostra que 47% dos homens se revelam insatisfeitos com seu círculo de amizades, demasiado restrito e incapaz de lhes dar o suporte esperado. Ao garimpar as raízes da decepção, 80% contam não ter recebido apoio emocional de um único amigo nos últimos tempos. A falta de iniciativa própria é um claro motor do isolamento — apenas 16% afirmam acionar alguém fora da rede familiar quando precisam. “Para o homem, é culturalmente mais complicado falar sobre seus conflitos, dúvidas e fragilidades, um freio fincado sobre uma velha percepção de masculinidade”, observa o psicólogo Claudinei Affonso, da PUC-SP. Meninos engatam em um processo de se fechar em si mesmos por volta dos 14, 15 anos, movimento que vai se acentuando conforme a idade adulta se avizinha. “Eles assimilam desde cedo a ideia de que exibir sentimento é sinal de vulnerabilidade”, explica o neurocientista Álvaro Machado.
Embora o planeta siga girando e ultrapassados estereótipos sobre a masculinidade venham se dissolvendo, cientistas da Universidade Fordham, em Nova York, ressaltam que certos pilares resistem firmes e fortes. Em uma detalhada escala em que hierarquizaram os atuais valores masculinos, “honra” e “virilidade” sobressaem entre os entrevistados, terreno altamente desfavorável ao que uma boa amizade requer: desarmar-se. “Por mais absurdo que seja, ainda guardo dentro de mim a noção de que homem não pode se abrir, pedir ajuda, se expor”, admite o artista plástico Marcelo Oliveira, 52 anos, que reconhece estabelecer com os poucos amigos laços que não se descolam da superfície. “Sei que poderiam me confortar nos momentos duros, mas impomos uma barreira para nós mesmos”, diz.
As razões elencadas pelas mulheres para selar amizades costumam diferir das dos homens em sua essência. Enquanto elas buscam acima de tudo trocas emocionais e intimidade, eles tendem a olhar com maior atenção para atributos externos, como posição social e prestígio, segundo aponta um estudo das universidades de Oklahoma e Arizona, nos Estados Unidos. “A maioria não percebe, mas ao cultivarem amizades sem profundidade, eles se põem em um desnecessário lugar de desamparo”, avalia o historiador Luciano Ramos, da ONG Promundo, voltada para o tema.
Para uma parcela dos que hoje se queixam de solidão, a dificuldade de dar densidade às conversas se anuncia já na adolescência, quando a roda social em geral se expande. Mas não para todos. Nessa fase, os que não se amoldam aos padrões dominantes tendem a ser excluídos e a viver ilhados. A literatura mostra que justamente aí eles que penam mais do que elas — um tormento que, mais adiante, pode se converter em relações calcadas na desconfiança. “Tinha gostos distintos dos meus colegas, nunca fui muito de andar em bando e me isolei desde os primórdios em meu próprio mundo, onde até hoje me sinto confortável”, conta o desenvolvedor de sistemas Michaell Rodrigues, 29 anos, que não se vê à vontade para remexer tópicos sensíveis mesmo com pessoas que lhe abrem espaço.
“Não há solidão mais triste do que a do homem sem amizades.”
Francis Bacon (1561-1626)
Conseguir ficar bem sozinho pode propiciar raros momentos de autoconhecimento que o poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867) definiu como oportunidade. “Quem não sabe povoar sua solidão também não saberá ficar sozinho em meio à multidão”, pontificou com incisivas palavras. Essa é uma dimensão certamente diferente da solidão em sua forma mais profunda e dolorida, aquela que o pintor americano Edward Hopper (1882-1967) retratou em suas telas com desconcertante realismo — um vazio que deságua em estresse, ansiedade e outros males. Por isso, defendem os especialistas, ela deve ser combatida com todo o afinco.
O mais longevo estudo sobre a felicidade, feito pela Universidade Harvard, não deixa dúvidas sobre os bem-vindos efeitos de relações verdadeiras e duradouras — elas são a chave para a plenitude. Um dos grandes pesquisadores das amizades humanas, o psicólogo americano William Hartup cavuca mais fundo: ele afirma que elos que primam pela solidez, baseados em igualdade e reciprocidade, constituem uma potente engrenagem para a resolução de problemas e tornam as pessoas mais autoconfiantes e generosas com o próximo. Felizmente, há progressos nesse campo. “Uma parcela dos homens começa a se reinventar e falar mais sobre o que sente”, analisa André Rabelo, da Sociedade Brasileira de Psicologia. Não lhes faltam motivos para virar a página do silêncio e ir atrás de um bom amigo.
Publicado em VEJA de 3 de maio de 2023, edição nº 2839