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O drama das gafes

Das piadas aos papéis de gênero, hoje ficou fácil dar vexame

Por Walcyr Carrasco Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 4 fev 2024, 08h00

Outro dia estava em um grupo de amigos. Uma lésbica contava, dramática, seu rompimento com outra mulher, mostrando até a foto de seu grande amor. Realmente bonita, à beira de uma piscina. Um rapaz comentou “nossa, é linda, até parece mulher”. Foi o caos. Ele já tentou explicar mil vezes que só queria elogiar, se expressou mal etc. etc. Ela foi embora e nem apareceu no encontro seguinte do grupo. Foi uma gafe tenebrosa — e preconceituosa. Não existe como sair dessa, embora ele jure que não queria dizer o que disse.

Há gafes de todos os tipos — como a da atriz que postou uma foto abraçada, segundo disse, com uma autora. Era uma arquiteta parecida com a outra. A gafe viralizou, todo mundo falava no assunto. A atriz, em vez de sofrer, agiu com humor, e no final o episódio ficou por isso mesmo. Eu mesmo já cometi gafes pavorosas. A pior delas foi há anos na Hungria. Fui assistir a uma ópera. No meu camarote, duas chinesas, uma mais velha e outra, jovem. Acenamos com a cabeça. No intervalo, fui conduzido por um funcionário do teatro até o saguão. Transformado em um restaurante temporário, estava forrado de mesas, todas com pratinhos. Sentaram-me a uma delas, com três pratinhos onde eram oferecidas deliciosas porções de salmão. Comi uma, enquanto o restante do público degustava as suas. Mas ninguém vinha sentar-se à minha mesa, comer os outros pratinhos. O cérebro é uma máquina perigosa. Arruma argumentos quando a gente quer fazer alguma coisa que não deve. Concluí que aquele salmão não tinha dono. E mandei ver nos pratinhos restantes. Nesse momento, as duas chinesas sentaram-se à minha mesa. Observaram os pratinhos vazios. Eu queria entrar embaixo da mesinha. Ficamos em um silêncio ensurdecedor. Não é todo dia que a gente ataca o salmão alheio. Mas não acabou aí. No dia seguinte, no café da manhã, quando eu atacava queijos, pães e geleias, as chinesas entraram no salão. Estavam no mesmo hotel. Nos olhamos. Mais uma vez, o constrangimento. Então sorri, e elas sorriram de volta. A única forma de se livrar de uma gafe, penso eu, é sorrir.

“Chamar uma mulher trans pelo masculino é praticamente crime. De fato, é ofensivo. É difícil viver com tantos certos e errados”

Vivemos em um tempo propício para gafes. Chamar uma mulher trans pelo masculino é praticamente um crime. De fato, é ofensivo. Mas muita gente ainda está se acostumando com os gêneros, os papéis sexuais. É preciso dar um desconto para quem tem boa vontade, mas comete as gafes. Tornou-se muito difícil viver em um universo com tantos certos e errados.

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Eu tento acertar, mas nem sempre consigo, digo o que não devia dizer. Mesmo piadas podem ser gafes horríveis — como brincar com o peso de alguém. E vamos falar a verdade: ninguém se encontra com alguém para ser esculhambado. O limite entre a gafe e a piada pode ser quase invisível. Mas usar a roupa errada, fazer um comentário inadequado, acho que faz parte da vida de todo mundo. Eu mesmo cumprimentei várias vezes um grande escritor. Sentia que ele não reagia a meus elogios. Mas julgava que era timidez, então elogiava com mais veemência. Até que um amigo, vendo a cena, me explicou que aquele era o primo do escritor. Tinha o mesmo sobrenome, mas não a fama. Calei-­me desde então.

Sei que cometerei muitas outras gafes ao longo da vida. Posso lutar contra essa minha tendência, mas é inevitável. Só espero não ofender ninguém. Porque se a gafe, ao contrário, for comigo, vou ser o primeiro a me divertir.

Publicado em VEJA de 2 de fevereiro de 2024, edição nº 2878

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