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Vida de Imigrante

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Alegrias e agruras da maior diáspora brasileira da história, a partir do olhar de um entre os 5 milhões que formam o fenômeno.
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Com quantas tulipas se faz uma primavera?

Da minúscula hortinha de apartamento em São Paulo ao quintal onde posso ser um lavrador depois do expediente: os registros de um caderninho cor de carmim

Por Edison Veiga 17 out 2024, 07h01
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  • Turista fotografa tulipas em jardim na cidade de Lisse, Holanda
     (Robin Utrecht/AFP/VEJA)

    Dez anos atrás eu tinha uma minimicro-hortinha de apartamento em São Paulo e lutava contra as cochonilhas que infestavam minhas plantas. Agora, neolavrador das horas vagas, anoto conquistas e derrotas botânicas em um caderninho capa cor de carmim onde se lê, em letras douradas e bom português, a frase “para um mundo melhor, seja diferente!”.

    Graças a essas garranchosas anotações sei, por exemplo, que no dia 13 de abril deste ano comprei uma magnólia. Uns dias antes, havia plantado três pés de framboesa, um de mirtilo e um de airela. No dia 14 foi a vez de fincar em meu solo 12 morangueiros, uma lavanda e uma cerejeira japonesa — de nome científico Prunus serrulata. O segundo pé de lavanda ficou para o dia seguinte.

    No 26 daquele mesmo mês comprei ainda duas amoreiras, uma cerejeira da variedade tamara, outra chamada kordis — elas seriam devidamente instaladas dia após dia, gradualmente. Ainda em abril plantei uma pereira williams e comecei a montagem de minhas duas hortas elevadas, cujas estruturas foram entregues no dia 28.

    Foi bom o mês de abril.

    As hortas foram feitas com carinho e técnica. Muito fundamento. Cada qual mede 2 metros de comprimento por 1 de largura. Na camada mais inferior colocamos apenas lascas de madeira. Depois, logo acima, lã. Em seguida feno. Uma cobertura de papelão separava isso tudo do que viria no topo: o solo. Primeiro, a camada de terra comum; imediatamente em cima, cerca de 30 centímetros de um composto orgânico de excelente qualidade.

    Meu caderninho tem tudo. É a descrição efetiva e afetiva que justifica cada um dos calos que se formaram nas minhas mãos. Calos novos, não aqueles da escrita. Calos inéditos, esses da palma da mão — consequências de ferramentas como enxada, pá, tesourão.

    Estão anotados o plantio e as espécies das pimentas, a semeadura do rabanete e da cenoura, o manejo das mudinhas de beterraba. Em suas páginas coexistem a alegria da colheita dos dois suculentos brócolis e a lamúria porque os três pés de alface, cada qual de uma variedade diferente, viraram comida de lesmas gigantes.

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    São folhas que guardam mais que rascunho de versos; nelas estão os registros das possibilidades da terra. Colhi tantos tomates que além de garantir todas as saladas do verão ainda fiz molho e até inventei um picles picante diferentão.

    Agora que o outono chega para dizimar a vida com sua ira sutil e bonita, manusear o caderninho também tem um quê de saudade — saudade do dia em que colhemos tanto manjericão, de três tipos e cores distintas, e tivemos o melhor pesto possível para o macarrão; saudade de temperar o vinagrete apenas com o que tivesse sido plantado por mim; saudade de lidar a terra como se eu fosse um agricultor tardio e incompetente.

    A capa dele é cor de carmim, como já disse. Leio aqui que a cor tem esse nome porque vem de um corante extraído da cochonilha-do-carmim, cujo nome científico é Dactylopius coccus.

    São necessários 70 mil insetos para fazer meio quilo do corante

    Não sei se estamos falando do mesmo bicho que atentava contra minha hortinha de apartamento.

    Finjo que sim. De certa forma trago então neste canhenho um pedaço do passado. “Organizações de defesa dos direitos animais têm criticado a prática de obtenção do corante a partir do inseto”, leio aqui também. “Tais grupos alegam que é antiética e cruel a morte de milhões de seres vivos para uma finalidade fútil.” Tudo isso quem diz é a Wikipédia, este oráculo da contemporaneidade.

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    Normalmente não mato nem mosca. “Para meio quilo do corante são necessários cerca de 70 mil insetos”, leio ainda. Normalmente quando uma vespa entra em casa, eu a caço com uma arapuca improvisada com um copo e cuidadosamente a liberto para o mundo exterior.

    Não faço ideia de quantos gramas de corante foram necessários para pintar a capa do meu caderninho hortelão. O que sei é que duas semanas atrás colhi as batatas doces plantadas no dia 15 de maio. Sei também que nos próximos dias devo arrancar as cebolas cultivadas dois dias antes das batatas. E, principalmente, hoje pela manhã anotei aqui em suas páginas a labuta do último fim de semana: em cinco fileiras, respectivamente na frente e ao lado da casa, enterramos com afinco e esmero 365 bulbos de tulipas de 10 variedades.

    Acho que as garatujas do caderninho carmim entrarão em hibernação a partir de agora, com os termômetros já mais perto de zero do que de 20 graus. Daqui a seis meses, observarei mais cores da minha janela. Alguma tulipa pode ser carmim? Cochonilhas gostam de tulipas? E lesmas?

    Com quantas tulipas se faz uma primavera?

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