Todo mundo tem um ex-parente nestes tempos de Brasil polarizado. Pois ouvi de pelo menos dois dos meus uma coleção de impropérios em 2022 — os rasos argumentos sempre começavam no viés autoritário de que eu “não poderia” dar meus pitacos eleitorais, “uma vez que nem sequer morava no Brasil”.
Participar da festa da democracia é uma coisa meio voyeur na vida do cidadão brasileiro que reside no exterior. Muitas vezes me sinto aquele adolescente que jamais era convidado para os bailinhos da escola — a gente até fazia parte da mesma turma, mas éramos de espécies completamente diferentes. Em outras, acho que estou como o vizinho bisbilhoteiro espiando pela janela a coisa toda rolando na casa ao lado.
No caso, a janela se chama “redes sociais”.
Contudo, prezados detratores, o fato de morar fora não tira meus direitos e deveres como eleitor — a obrigação, o prazer e a delícia de votar seguem firmes, mas somente para presidente da República. Em outras palavras, na festa da democracia de 2022 eu era aquele convidado que até foi, mas estava tomando antibióticos e precisou recusar os drinques.
E neste ano de eleições municipais resignei-me a ser um mero espectador, às vezes torcedor. Acrescente cinco horas ao fuso brasileiro e você terá a dimensão do caos mental.
Como explicar a cadeirada para um estrangeiro?
Horário eleitoral. Debates. Memes. Mais debates. Muitos memes. Figurinhas de WhatsApp.
Repercussão no noticiário, análises, críticas. Pesquisas de opinião.
Provocações. Cadeirada. Consequências da cadeirada.
Tentativas de explicar a cadeirada.
Mais notícias. Outros debates. Pesquisas, pesquisas e pesquisas. Análises das pesquisas. Memes até não poder mais.
O bizarro e criminoso caso de um laudo médico fraudado.
Notícias de última hora em tempo real.
O dia das eleições. A apuração. Contagem acirrada.
Ufa!
Tudo isso com direito a espiadas constantes nas janelas virtuais, é claro. Para o brasileiro no exterior, a eleição é quase uma experiência sensorial: podemos ver as cenas, ouvir os áudios que viralizam, sentir o cheiro da confusão política, mas quando chega a hora de votar… nada. Feito eleitor-fantasma, alma penada das políticas municipais, flutuamos na timeline de amigos e familiares — e, ousados e falastrões, até arriscamos palpites. Tenho um amigo que chega a obrigar a mãe a votar no candidato por ele escolhido, criando uma espécie de voto por procuração extraoficial! Para tudo dá-se um jeito, a criatividade é um privilégio nosso. Tudo é possível. Menos o deleite de apertar o botão “confirma” e ouvir aquele sonzinho inesquecível.
Vez por outra precisamos contextualizar os vizinhos e amigos daqui sobre o que está acontecendo. Algumas notícias, sobretudo das capitais, transcendem o noticiário brasileiro e a gente se pega tendo de explicar não só as maravilhas da urna eletrônica mas também as fake news mais inusitadas, o domínio da moral evangélica nas promessas de campanha e todos os meandros eleitoreiros que beiram o surrealismo.
– Sim, sim. É, teve isso. A cadeirada acertou, mas normalmente não é assim que decidimos as coisas no meu país. Pode acreditar em mim. Normalmente não é assim, não. Eu mesmo nunca usei desse tipo de argumento. Ah, o gesso? Parece que é cenográfico…
No final, a apuração fica com aquele gosto de ressaca. Sem o privilégio de ter participado da festa, sentindo-se como quem crava um voto nulo pela distância. Sentindo-se uma nulidade estatística, um eleitor inexistente.
O fuso horário atrapalhado traz a noite em claro. Olhos na tela. Em tempo real. Voto a voto. Assim, na briga com o sono, fica até fácil confundir realidade com pesadelo.
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