Quando o cantor e compositor Prince morreu, aos 57 anos, em 21 de abril de 2016, o mundo era outro. A eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos ainda era tratada como piada, as notícias falsas não haviam tomado a dimensão que têm hoje e ninguém jamais imaginaria que o mundo seria assolado por uma pandemia. Mas, em tom quase profético, Prince já havia deixado pronto um álbum com músicas que pareciam ter sido feitas para falar justamente do período que estamos vivendo: dos abusos da tecnologia e invasão de privacidade à proliferação das fake news. Gestado em sua mansão e estúdio, em Paisley Park, no Minnesota, a 30 minutos de distância de Minneapolis – cidade onde George Floyd seria assassinado, três anos após a morte do cantor, e onde surgiu o movimento Black Lives Matter -, o disco aborda também o racismo sistêmico da sociedade americana.
Embora o álbum já estivesse pronto no final de 2010, dois anos após a eleição de Barack Obama, por algum motivo desconhecido Prince preferiu arquivar o trabalho. Somente nesta sexta-feira, 30, cinco anos após a sua morte, é que aquelas 12 faixas estão sendo lançadas, neste que é o primeiro álbum póstumo do artista, intitulado Welcome 2 America. Perfeccionista e workaholic, o cantor compunha sem parar, mas nunca ficava satisfeito com o produto final. Resultado: sua irmã e herdeira, Tyka Nelson, descobriu um acervo de mais de 8 000 composições inéditas, material suficiente para lançar, no mínimo, 600 discos (numa estimativa modesta).
Para além do tom profético das letras, é a qualidade das músicas que salta aos ouvidos: trata-se do melhor trabalho do artista em quase duas décadas. Inexplicavelmente, seus últimos álbuns tinham sido longas jam sessions instrumentais de jazz e funk que em nada lembravam os elogiados Musicology (2004) e 3121 (2006), apenas para citar os bons discos que ele lançou no século XXI. Como nada sugeriria que Prince poderia ter tantas cartas na manga assim, fica no ar a questão: por que ele não havia lançado o trabalho antes? Talvez jamais saberemos a resposta. O fato é que o álbum mistura o groove e o funk do artista com batidas eletrônicas mais pesadas. Uma combinação matadora e irresistível.
Quando se olha apenas para as letras, impressiona sua atualidade. A canção título, por exemplo, critica a hiper-exposição às tecnologias. “Distraído pelos recursos do iPhone / Tenho um app para cada situação”, ele canta, para completar em seguida: “Bem-vindo à América. Bem-vindo ao grande show (…) Terra da liberdade, lar dos escravos”. A escravidão volta a ser mencionada em Running Game (Son of a Slave Master), em que Prince fala sobre um filho de dono de escravos. O tema do racismo reverbera, ainda, em One Day We Will All B Free, sobre o ensino americano. “Você vai para a escola só para aprender sobre o que nunca existiu”, diz um dos versos.
Em um exercício arriscado de adivinhação, talvez o motivo do adiamento tenha sido óbvio: Prince era tão genial que farejou o que vinha para a frente no mundo, e quis aguardar o momento certo para lançar o disco. A hora chegou, ainda que postumamente.