Mulheres empoderadas, masculinidade frágil, crítica ao agronegócio, veganismo… Afinal, a versão da TV Globo para Pantanal, original de 1990, pode ser considerada uma novela de esquerda? VEJA ouviu especialistas em teledramaturgia para darem seus pitacos nesta polêmica, já que a trama de Bruno Luperi tem movimentado bastante as redes sociais – como há tempos não se via. O remake é baseado na obra de Benedito Ruy Barbosa.
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E quem conhece a trajetória do autor, sabe que ele flertava com a pauta da esquerda: levou para o horário nobre da TV Globo assuntos, por exemplo como reforma agrária e Movimento dos Sem Terra (MST) em O rei do gado, de 1996. Ana Paula Gonçalves, doutora em Comunicação pela PUC-Rio, frisa que muita coisa mudou no país nesses mais de trinta anos. “Tanto os extremistas da direita quanto da esquerda apontam aspectos da obra e usam em sua campanha: se por um lado temos eleitores de Bolsonaro exaltando a espingarda de Juma (como argumento favorável ao armamento da população), do outro temos a esquerda mostrando como a nova versão mudou o olhar para a importância da mulher, não mais como objeto sensual”, analisa.
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Aliás, as cenas que mostram a sensualidade masculina, assim como suas fragilidades (tema impensável no Brasil dos anos 1990), são recorrentes na atual novela. “Estas mudanças no perfil dos personagens são motivadas pelas mudanças sociais que tivemos, especialmente no período em que o país foi governado por um governo de esquerda. Foi a partir daí que minorias começaram a ter algum papel em uma sociedade até então machista, racista e homofóbica”, continua Gonçalves. Ela prefere não cravar o “perfil político” da trama. “É uma novela que não se posiciona para o lado político, mas mostra avanços sociais que devem incomodar mais a direita conservadora que a esquerda”, diz.
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Outra pesquisadora de teledramaturgia, Aurora Leão, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), recorda que o autor é o mesmo de Velho Chico, de 2016 – cuja trama levantava olhar crítico para velhas políticas no interior nordestino. E vai direto ao ponto: “A novela é sim de esquerda, se considerarmos que questiona a estrutura patriarcal e o modelo colonialista, aponta os malefícios do agronegócio e o desmonte ambiental do país, empodera as mulheres ao mostrar o exemplo da Bruaca (personagem de Isabel Teixeira), que acordou da opressão que vivia ao lado do marido. É uma trama que assinala o machismo como tragédia social, que vitimiza mulheres e aprisiona os homens em nocivos modelos de masculinidade”, aponta a especialista, ressaltando as efemérides dos 200 anos da Independência (em setembro) e os 120 anos de Os sertões, de Euclides da Cunha. “Pantanal é obra afirmadora da potência da identidade brasileira e uma defesa clara, importante e necessária do estado democrático de direito”, continua Aurora.
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Já o roteirista e dramaturgo Lucas Martins Néia, doutor em Ciências da Comunicação pela USP, explica que são mais fatores mercadológicos do que ideológicos que guiam essas produções de criação artística. “Novela das 9 até hoje é o principal produto do entretenimento brasileiro, pela capacidade de chegar a diversas instâncias. Temos que pensar que é um trabalho artístico, mas também tem que ser viável comercialmente, ou seja, precisa atingir um maior número de telespectadores”, diz Néia. “Assim, essa Pantanal de 2022 tem um viés mais à esquerda, mas é um produto pensado para atingir diferentes tipos de público”, conclui.