Autor de estudos fundamentais para explicar a relação do Executivo com o Legislativo na democracia, o cientista Fernando Limongi lançou um livro para recontar a crise política do impeachment de Dilma Rousseff. Diferente de seus outros textos, “Operação Impeachment: Dilma Rousseff e a Lava Jato” (editora Todavia, 346 páginas, R$ 72) não faz uma análise das votações no Congresso e do poder dos líderes partidários em manter suas bases coesas. Baseado em fontes jornalísticas, o livro contraria o senso comum e argumenta que o motivo decisivo para o afastamento de Rousseff não foi a falta de apoio político, mas o avanço inexorável das operações da Lava-Jato.
Professor da USP e da FGV, Limongi afirma nesta entrevista que tanto o impeachment de Rousseff como o de Fernando Collor em 1992 foram erros políticos e que o impasse de Lula com o Congresso vai durar até a definição do sucessor de Arthur Lira na presidência da Câmara.
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VEJA – O senhor é autor, junto com a professora Argelina Figueiredo, de estudos clássicos da ciência política sobre o surpreendente bom funcionamento do presidencialismo de coalizão. O seu novo livro, no entanto, avalia o confronto da presidente Dilma Rousseff com o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e o impeachment de 2016 sem se debruçar nas votações ou correlação de força do governo no Congresso. Por quê?
FERNANDO LIMONGI- Porque o que precisava ser explicado era diferente. A base do governo Dilma teve oscilações no Congresso, mas nunca ficou com menos de um terço dos votos na Câmara (o número mínimo para impedir o impeachment). Ela mantinha um controle mínimo da base. O que eu quis chamar a atenção foi como o Eduardo Cunha foi adiando a aceitação do pedido de processo impeachment como forma de manter seu poder e evitar que ele mesmo fosse investigado.
VEJA – É natural encontrar similaridades no processo de impeachment de Dilma Rousseff com Fernando Collor. Nos dois casos, o País estava sob recessão, havia um escândalo de corrupção, manifestações gigantes nas ruas, uma relação ruim do presidente com o Congresso e o vice-presidente interessado no cargo. Os dois casos se comparam?
LIMONGI – Acho que essa visão do Collor não corresponde inteiramente à verdade, porque as primeiras 15 medidas provisórias que ele envia ao Congresso (do Plano Collor, do confisco da caderneta de poupaça) teve apoio de 100% do então PFL e PPB (partidos que deram origem aos atuais União Brasil e Progressistas). Então, o problema para explicar o impeachment do Collor é entender porque esses mesmos partidos que o apoiavam em medidas radicais no início o abandonam. É preciso lembrar que meses antes (antes da abertura do processo), ele havia mudado o ministério, colocado o Jorge Borhausen na chefia da Casa Civil… Talvez ele não tivesse a mesma força que a Dilma para resistir.
Eu penso que ali, assim como no processo da Dilma, houve um erro político. Teria sido melhor aceitar a reconstrução do governo Collor e aguentar. Depois da Dilma Rousseff, a ideia de impeachment virou arroz com feijão. Pode até ser que as forças políticas resolvam que vai ser sempre assim, que este é o novo equilíbrio… mas na minha opinião, isso é péssimo.
VEJA – No livro o senhor cita uma frase do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso de que “o impeachmento é como a bomba atômica, serve como dissuasão, mas não é para ser usado”.
LIMONGI – O impeachment é para um caso excepcional, uma traição à pátria, algo que seja inadmissível. Porque existem várias formas de empurrar um presidente ruim ou que está fazendo besteira de volta para o eixo. O presidente tem conselheiros, existe o Congresso, o Supremo, então tem travas (para impedir o presidente de manter uma política equivocada). É sempre melhor reconstituir o governo, mesmo com o presidente ruim, ou que se você julgue ruim. É preferível viver sob esse regime do que ficar criando essa instabilidade ameaçando o mandato presidencial.
A ideia de que você pode aproximar o impeachment no presidencialismo de um voto de censura do parlamentarismo está errada. A luta eleitoral político partidária se resolve no momento eleitoral e por reconfigurações das coalizões de sustentação do governo. Você refaz a base governista, não o resultado da eleição presidencial.
VEJA – Um dos pontos centrais do seu livro é que, ao contrário do consensual, o governo Dilma Rousseff negociou até o fim para obter uma maioria parlamentar e que talvez teria sobrevivido se não fossem duas ações da Lava-Jato, a prisão do marqueteiro João Santana e a liminar impedindo do ex-presidente Lula de assumir o ministério da Casa Civil. Lógico que é contra-factual avaliar o que poderia ter ocorrido, mas esses foram os dois pontos que derrubaram o governo?
LIMONGI – Foram os turnings points. Você pode assumir que era meio inevitável a queda da Odebrecht pelo avanço das investigações do Ministério público e do Judiciário, mas não pelo sistema político.
Entre o final de 2015 e o início de 2016, o sistema político estava se acomodando. As pesquisas que o PSDB tinha em mãos registravam uma perda de popularidade muito grande para o PSDB. O Aécio Neves (principal nome do PSDB) deu uma declaração dizendo “nós vamos vencer o PT no próprio campo do PT mostrando que as políticas sociais do PT são ineficientes”. Mas logo que a Operação Lava-Jato avançou, o Aécio esqueceu seu plano de longo prazo e vai para a derrubada do governo.
No começo de março de 2016, numa jantar na casa do senador Tasso Jereissati, é que a ficha caiu. Posteriormente as gravações do (ex-presidente da Transpetro) Sergio Machado com os líderes do PMDB ainda estavam preocupados em salvar o Lula (da Lava-Jato), não a Dilma, não o Cunha. Naquele momento (ainda antes da votação do impeachment), Cunha já era irrelevante para o PMDB e o PSDB, para o senador Romero Jucá, o ex-presidente José Sarney, o Aécio Neves..
VEJA – Fernando Collor e Dilma Rousseff caíram, mas Michel Temer não. A Procuradoria Geral da República fez dois pedidos de afastamento o presidente depois das delações dos irmãos Batista que não foram aprovados pela Câmara. O que fez o sistema político mudar?
LIMONGI – No processo do Temer, todo mundo estava enfraquecido (Eduardo Cunha havia sido afastado, Lula estava sob investigação e Aécio Neves denunciado). Entregar o Temer só aumentaria o buraco que todos estavam enfiados. A oposição não mobilizou os movimentos de rua, a direita não tinha motivo para ir para a rua… O plano do Romero Jucá de “estancar a sangria” estava quase dando certo, só que a PGR não fechou o acordo e foi para cima do Temer.
Só que tirar o Temer para por o (então presidente da Câmara) Rodrigo Maia era trocar seis por meia dúzia, o próprio Maia percebe que não tem nada a ganhar. A sangria não estancou.
VEJA – Uma das consequências desse processo é o aumento do poder do Congresso, primeiro para decidir quais presidentes ele derruba ou não, e depois no controle de parte do orçamento. O que vamos ver daqui para frente é um Congresso que leva o presidente no garrote?
LIMONGI – O Congresso sempre foi muito poderoso. O Luís Eduardo Magalhães no primeiro mandato FHC foi tão ou mais pooderoso que o Eduardo Cunha. O bom funcionamento do sistema político sempre dependeu da sintonia entre o presidente e o presidente da Câmara.
Nesses anos temos duas mudanças estruturais. A primeira é o tempo de eficácia das medidas provisórias e como elas são encaminhadas, que rendeu essa divergência entre o (presidente da Câmara) Arthur Lira e o (presidente do Senado) Rodrigo Pacheco.
A outra questão é a participação do Congresso dentro do Orçamento. O caso das emendas individuais, embora impositivas, a execução sempre depende da burocracia e de que o planejamento esteja certo, o projeto esteja certo, de que o programa exista.
A liberação de verba é uma luta cotidiana do deputado com uma burocracia insana e em que os lobistas falam muito mais do que o político porque os lobistas sabem fazer o projeto atender aos requisitos da burocracia.
Acho uma bobagem dizer que as emendas são uma forma de os políticos roubarem, de se apropriarem de dinheiro público. Não estou dizendo que não existe corrupção, mas que levar emendas faz parte do que os eleitores esperam de seus eleitos.
Quem disse que alguém no prédio de um Ministério em Brasília sabe a alocação ótima de recursos para o Brasil inteiro e não um deputado que tem a informação da sua base?
VEJA – Esse choque distributivo entre quem manda no orçamento será o tom da relação do Executivo e Legislativo?
LIMONGI – Aconteceram dois elementos exógenos que ampliaram isso. O primeiro foi a pandemia, que com suas sessões virtuais concentrou muito poder nas mãos dos presidente da Câmara. O segundo foi o fato de o presidente Bolsonaro não ter o menor interesse pelo orçamento. O Paulo Guedes deu inúmeras declarações dizendo que queria deixar o orçamento para o Congresso, achando que com isso ele ia criar uma reação da opinião pública contra o gasto ineficiente e segurar as despesas. O Rodrigo Maia e o Arthur Lira perceram isso e o gênio saiu da garrafa.
VEJA – E tem como recolocar o gênio na garrafa?
LIMONGI – Não é uma coisa para se fazer do dia para a noite com um sistema político que está fraturado em razão do impeachment. Esse acordo atual foi feito no terceiro ano do governo quando o Arthur Lira vira presidente da Câmara e o Bolsonaro entrega o orçamento para ele e “cuida disso aí e não me faça mal”.
Ao mesmo tempo, o PT de hoje não é não é o PT de dantes. É um PT em que houve uma troca geracional e regional. O PT é um partido hoje de ex-governadores do Nordeste, do Rui Costa, do Wellington Dias, do Camilo Santana, que suportaram o auge do bolsonarismo em 2018. Não é mais o PT do José Dirceu, dos sindicalistas.
E por fim a oposição ao governo é outra. Existe uma direita que não é razoável, que pede uma CPI do 8 de janeiro para gravar vídeos para internet, uma coisa surreal.
VEJA – E como o presidente Lula se coloca nesse nesso cenário?
LIMONGI – Lula cresceu num outro mundo, numa outra estrutura e agora ele tem que se adaptar a essa lógica na qual ninguém quer saber o governo está fazendo ou não está fazendo, querem fazer bagunça, gravar vídeo e mandar mensagem.
Atrelados ao Bolsonaro, o PL, PP, União Brasil tiveram um desempenho excepcional na eleição e não têm como aderir ao governo Lula sem trair o seu eleitorado de forma radical.
VEJA – É um impasse?
LIMONGI – Só depois da eleição para prefeito e, principalmente, no pós eleição para presidente da Câmara é que vai dar sinalizar um pouco para onde vai essa oposição. Eles podem se viabilizar para voltar à presidência em 2024. Até lá é o impasse.