O governo enviará nesta quinta-feira, dia 31, o primeiro projeto de Orçamento de Lula 3 prevendo que o déficit público de 2024 será zero. É uma peça de otimismo, talvez até demasiado, mas até aí nada de novo. Governos de esquerda, de centro ou de direita são otimistas por natureza. O relevante é que o governo Lula vai formalmente se recusar a mudar a meta ao menos no primeiro ano do arcabouço fiscal. O nome dessa recusa é Fernando Haddad.
O mercado financeiro trabalha com a hipótese de um déficit de 0,75% e, por isso, haveria farta distribuição de taças de Moët & Chandon na Faria Lima se o time do ministro Fernando Haddad chegasse abaixo de 0,5%. Mais do que o índice final, interessa ao mercado testar se o governo tem mesmo o compromisso de conduzir uma redução do déficit. Esse é o teste que Haddad vai atravessar a partir de agora. Esqueça, portanto, todas as páginas sobre como Haddad havia conquistado a Faria Lima. Ele voltou a ser escrutinado como havia sido no início do ano.
Nas contas da Fazenda, para manter os gastos no mesmo nível de 2023 com o aumento previsto do salário mínimo serão necessários pouco menos de R$ 150 bilhões em receitas extras. Aí entra o otimismo. O projeto de orçamento deve estimar uma arrecadação de R$ 50 bilhões líquidos em ganhos nos julgamentos do Carf, o tribunal de recursos de autuações da Receita Federal. Como o estoque dos julgamentos do Carf está na casa do trilhão de reais e a nova lei aprovada nesta semana no Senado dá mais poderes ao governo, é até possível que esses R$ 50 bilhões se materializem. Mas é um chute.
O governo estima que vai arrecadar outros R$ 50 bilhões com a cobrança de impostos federais sobre créditos estaduais obtidos por empresas, após vencer a questão em julgamento no Superior Tribunal de Justiça. Outros R$ 30 bilhões viriam da cobrança de PIS/Cofins sobre receitas financeiras dos bancos, noutra vitória judicial, desta vez no Supremo Tribunal Federal. São estimativas muito acima das expectativas das corretoras.
O maior barulho estará nos três projetos no Congresso, mas juntos eles não vão arrecadar R bilhões. Por partes:
Fundos Exclusivos: Em medida provisória, será proposta uma alíquota de 10% para os investidores de fundos exclusivos que decidam recolher antecipadamente o imposto de renda sobre o estoque investido. Sem a antecipação, a alíquota iria para 15%. Imagina-se que a medida poderia arrecadar R$ 3 bilhões neste ano e R$ 7 bilhões no ano que vem. Na regra atual, os fundos exclusivos só recolhem IR quando são encerrados ou quando os recursos são sacados.
Não vai acontecer. Metade dos congressistas tem participação nesses fundos, que começa com investimentos de R$ 10 milhões. Está para nascer o político que vote contra o próprio bolso.
Offshore: Para irritar Haddad, o presidente Arthur Lira obrigou o governo a substituir a medida provisória sobre fundos offshore por um projeto de lei. Por quê? Para mostrar que ele pode. O novo projeto de lei terá o mesmo texto que estava em tramitação, com a possibilidade de o governo ainda rebaixar a alíquota de quem pretende antecipar a repatriação do fundo de 10% para 7%. Deve passar, mas o rendimento é coisa de R$ 3 bilhões a R$ 4 bilhões.
JCP: Formalmente, a proposta que o governo encaminha no dia 30 ao Congresso vai acabar com os Juros de Capital Próprio (JCP), uma forma de distribuição de lucros alternativa aos dividendos que gera benefício fiscal. Mas só formalmente. O que o Ministério da Fazenda pretende é substituir o JCP por uma versão brasileira do Allowance for Corporate Equity (ACE), um incentivo fiscal usado em alguns países europeus para empresas que escolhem capital em vez da dívida. O mecanismo considera que os pagamentos de juros sobre a dívida são impostos dedutíveis, enquanto os pagamentos de dividendos a investidores em ações não o são. A ideia impede as várias brechas na JCP, notadamente por empresas não financeiras, mas para funcionar precisa que em ato contínuo o Congresso aprove a cobrança de imposto sobre dividendos.
Há ainda o lado de corte de despesas, ainda que esta não seja a opção preferencial do presidente Lula. O arcabouço vai obrigar o governo a contingenciar gastos caso fique evidente que a trajetória fiscal está fora da meta. Em documento com projeções fiscais, o Tesouro considera um cenário de contingenciamento de 0,5% do PIB – o que é inviável politicamente, mas reforça que o bloqueio de despesas não é tabu na Fazenda.
Para entender a amplitude das discussões na Fazenda, nesta semana os técnicos discutiram a possibilidade de aumentar o IOF sobre operações de crédito para compensar a isenção do IR do salário mínimo. Seria uma medida francamente impopular, mas exemplar de que para o time de Haddad nada está fora da mesa.
A credibilidade conquistada por Haddad junto à elite política e financeira se baseia em credibilidade, um sentimento tão intangível quanto volátil. Essa credibilidade hoje se segura na insistência do time de Haddad de entregar uma curva consistente de redução de déficit. Se houver uma opinião geral de que essa redução não vai ocorrer, a credibilidade corrói. Se essa opinião vier agora, apenas semanas depois da aprovação do arcabouço, a credibilidade acaba de vez. Haddad precisa convencer a elite de que vai até o fim com a redução do déficit como um balão precisa de ar para voar.
Terabytes de textos serão postados para provar que, ao fim, o projeto do orçamento não vai garantir o déficit zero. Mas neste caso a política é mais forte que os números. É fundamental para o futuro do ministro Haddad dar a indicação de que a sua gestão tem compromisso fiscal e, se para isso ele precisar ter um plano B, então assim será. O Ministério da Fazenda tem uma dúzia de planos B, iniciando com a venda dos direitos da União em contratos do regime de partilha de petróleo da PPSA, passando pela negociação de blocos de petróleo e renegociação das dívidas federais da Petrobras. Não são medidas bonitas, mas resolvem o déficit.
Junto com isso, o governo vai enviar ainda neste ano uma Proposta de Emenda à Constituição com duas medidas que afetam a capacidade de cumprimento da meta fiscal. Numa, passa a classificar o estoque das dívidas em precatórios como despesa financeira, tirando a despesa da meta de resultado primário. É uma manobra, mas também resolve uma das piores heranças da gestão Guedes.
Na outra, o governo Lula vai propor a retirada da Constituição dos artigos que o obrigam a aumentar as despesas em saúde e educação na mesma relação do crescimento de despesa. A proposta tem lógica econômica, mas contraria todo o discurso do PT dos últimos anos. Haddad vai apanhar mais do que boneco de Judas em Sábado de Aleluia. Há coisas que só um governo de esquerda é capaz de aprovar.
O PT chamava o Teto de Gastos como “Lei do Fim do Mundo” justamente por limitar os gastos com saúde e educação e agora terá o choque de ver um governo seu defendendo a ideia. No limite, trombar com o PT pode limitar a possibilidade de Haddad ser novamente candidato a presidente, um risco que hoje o ministro está disposto a correr.