Você já assistiu essa cena antes: o presidente Jair Bolsonaro dá uma declaração agressiva sobre o Congresso ou a democracia, os políticos produzem notas toscas de repúdio, os jornais publicam editoriais recheados de adjetivos e dois dias depois tudo segue como se nada houvesse acontecido. Até que acontece de novo. E de novo. E de novo. Parece uma cena do filma Dia da Marmota. A diferença é, Bolsonaro sabe o que está fazendo.
O presidente acredita (o que significa que não importa se é fato ou não, pois as ações correspondem à crença) que há o risco de sofrer um processo de impeachment. Para impedir o destino de Collor e Dilma, Bolsonaro precisa ter uma base no Congresso e uma militância inflamada nas ruas e nas redes.
Para o primeiro passo, ele autorizou o ministro general Luiz Eduardo Ramos a negociar cargos no governo com os partidos do Centrão, ressuscitando o velho toma-lá-dá-cá que os bolsonaristas combatiam tanto na campanha. Como se trata de Bolsonaro, nunca se sabe se ele não irá desautorizar o general mais à frente, mas por enquanto as negociações estão andando.
Para a segunda parte, o presidente se colocou na sua posição favorita, a de vítima de uma conspiração das elites da “velha política”. Daí a participar de atos a favor do fechamento do Congresso, impeachment de ministros do Supremo e um novo AI-5 é apenas a consequência natural. Bolsonaro não foi a uma manifestação golpista porque se acha capaz de uma quartelada. Ele foi para reascender o apoio dos seus eleitores e assustar os congressistas.
A postura anti-quarentena de Bolsonaro na crise do coronavírus afeta a sua popularidade. Por um lado, aumentou a quantidade de brasileiros que rejeitam completamente o governo (era de 36% e agora são 42%, segundo a XP/Ipespe). Hoje o Datafolha mostrou um novo indicador, a de que cresce o apoio ao presidente entre trabalhadores aptos a receber o auxílio emergencial de R$ 600. São informais, trabalhadores sem registro ou que ganham até 2 salários mínimos – as primeiras vítimas da recessão que se anuncia para o resto do ano. Para essas pessoas, Bolsonaro é o único político ao seu lado, justamente por defender a reabertura da economia de uma forma irresponsável durante a pandemia.
O coronavírus está provocando um reordenamento das forças políticas, tirando de Bolsonaro o apoio dos mais ricos, mas em troca lhe dando sustentação na classe média baixa. Teremos tragédias em série nos próximos meses, com milhares de mortes, hospitais em colapso, desemprego de milhões e falência de milhares de empresas. Mas Bolsonaro não está sozinho.