A comparação é implacável: em 2020, com R$ 10 milhões de orçamento e pouca estrutura, Guilherme Boulos teve o mesmo percentual de votos do que no segundo turno deste domingo, quando gastou quase R$ 70 milhões, teve o apoio do presidente da República, tempo de TV e marqueteiro premiado. Boulos, que em 2020 parecia representar uma renovação na esquerda, foi massacrado em 2024 por 60% a 40% por um dos prefeitos menos carismáticos da história de São Paulo, Ricardo Nunes. A radiografia da derrota de Boulos diz muito sobre o péssimo resultado da esquerda, do PT e do governo Lula nas eleições municipais.
A eleição municipal de 2024 teve um grande vencedor, as emendas parlamentares. O índice de reeleição de prefeitos, que nas últimas campanhas não chegava a 60%, ultrapassou os 80%. Dos vinte prefeitos de capitais que disputaram a reeleição, 16 conseguiram. Como a esquerda é francamente minoritária nas prefeituras, a onda de reeleições apenas confirmou a fragilidade que vem desde 2016.
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A força do status quo não altera a dimensão dos erros do PT, da esquerda e do governo Lula. Desde as marchas de 2013, dezenas de estudos mostraram a insatisfação latente da parcela da sociedade que alguns batizaram de “nova classe C”, “batalhadores” ou “empreendedores da periferia”. O nome importa menos que a incapacidade do PT e do governo Lula em dialogar com doceiras, entregadores, motoristas de Uber e vendedoras da Avon que não têm (e muitas vezes não querem ter) carteira assinada e estão mais preocupados em como pagar o carrinho de compras do que com discursos sobre a democracia.
Pesquisa qualitativa de 2022 da Fundação Perseu Abramo, o braço acadêmico do PT, mostrou que essa parcela da sociedade é essencialmente conservadora nos costumes, confia apenas em si para resolver seus problemas, acha que os serviços públicos são ruins e enxerga o establishment como símbolo de burocracia e corrupção. “São eleitores pragmáticos, preocupados com as contas a pagar. Se orgulham de se definirem como ‘trabalhadores’, e aqui a palavra não é uma definição de classe, mas um atributo de valor”, disse a professora Isabela Kalil, Fundação Escola de Sociologia e Política (FESP/SP). Os entrevistados têm um a autoimagem (de si e do brasileiro de modo geral) de serem batalhadores, fortes e persistentes. A resiliência, a capacidade de “sou brasileiro não desisto nunca”, é um atributo pessoal e nacional.
O PT não soube usar as informações e dois anos depois, o Ministério do Trabalho do governo Lula segue achando que a sociedade inteira quer viver sob as regras trabalhistas da CLT, pagar taxas sindicais e não ter acesso a empréstimos usando o FGTS como garantia.
A segurança pública é outro assunto tabu nos discursos da esquerda, como se os mais pobres não fossem as maiores vítimas da violência urbana. Há meses o governo Lula segura o lançamento de um projeto para assumir como sendo federal a coordenação do combate às facções criminosas.
Mas a campanha municipal de 2024 mostrou um erro novo, a falta de defesa do governo Lula pela maior parte dos candidatos. Guilherme Boulos fingiu que o ministro Fernando Haddad nunca havia sido prefeito de São Paulo e, no último debate, deixou que Ricardo Nunes desse crédito a si mesmo pelos 2 milhões de empregados criados em São Paulo nos últimos dois anos, como se as ações do governo Lula não existissem. Num momento em que o país tem o melhor momento econômico em dez anos (desemprego abaixo de 8%, PIB crescendo 3%, inflação razoável, gastos sociais federais em níveis máximos e aumentos reais de salário) nenhum candidato a prefeito foi à TV defender Lula ou a política econômica de Haddad.
Os candidatos da esquerda queriam um vídeo com o apoio de Lula, mas era um caminho de uma mão só. A eleição mostrou um isolamento de Lula que reflete o estilo do seu governo. O presidente que só conversa com meia dúzia de ministros, quase todos do PT, está sem diálogo até com quem deveria fazer a sua defesa. Conta-se nos dedos quantas vezes o presidente recebeu empresários, cientistas, acadêmicos ou sindicalistas para ouví-los. No geral, eles só entram no Planalto como plateia dos discursos presidenciais. Mesmo os políticos só são recebidos por Lula quando o governo está à beira do precipício numa votação no Congresso. Lula ouve pouco e o pouco que ouve é sempre dos mesmos interlocutores que, quase sempre, dizem que ele tem razão. Isolado por vontade própria, Lula terá dificuldades para entender o que se passou nas eleições.