Durante anos, a TV tentou reproduzir Além da Imaginação, série que estreou no final da década de 1950 e que ainda influencia a produção televisiva.
Muitos produtores americanos tentaram, de forma velada ou explícita, reproduzir sua proposta, mas foi Charlie Brooker, um britânico, quem mais se aproximou da produção criada por Rod Serling. Não porque Brooker tente reproduzir o que Serling já fez, mas porque dá sequência ao que foi proposto por ele.
Serling contava suas histórias a partir do ser humano e a forma como ele se relaciona com as mudanças sócio-culturais e tecnológicas de sua época. Brooker narra suas histórias a partir das novas tecnologias e como elas influenciam as opiniões e comportamentos do ser humano.
Serling explorava a psicologia, a fé e o emocional dos personagens e do público que estavam entrando em um mundo novo. Brooker mostra ao público de hoje personagens que já fazem parte deste novo mundo, mas que começam a perceber que este mundo somente será real se ele se permitir questionar suas ideologias.
Quando o Channel 4 estreou Black Mirror na Inglaterra em 2011, Brooker já divulgava em alto e bom som que a série seguia a mesma proposta de Além da Imaginação. Mas, ao contrário desta, que ofereceu episódios sobre uma diversidade de temas, expondo seus personagens a diferentes situações, Black Mirror se restringe (ao menos até o momento) aos efeitos colaterais das novas tecnologias (especialmente a Internet, com suas redes sociais). Ainda assim, demonstrando um grande potencial para ampliar seu olhar.
Nas duas primeiras temporadas, compostas de três episódios cada, Brooker ofereceu uma amostra da série. Fazendo uso do humor negro, as temporadas ofereceram histórias que variavam em qualidade, mas sempre surpreendendo no final. Prevaleceu uma visão pessimista do comportamento humano cada vez mais insensível, cínico e egoísta. Esta era a série voltada para o público britânico.
Mais de um ano se passou quando o Channel 4 exibiu o especial natalino, que serviu como um episódio de transição entre as duas primeiras temporadas e a terceira. Estrelado por Jon Hamm (Mad Men), o especial de 90 minutos foi produzido já tendo em mente uma audiência maior, considerando a presença de um ator internacionalmente reconhecido e o fato da série ter sido adquirida para exibição nos EUA, pela DirecTV.
Em 2015, Black Mirror foi resgatada pelo serviço de streaming Netflix, sem que tivesse sido oficialmente cancelada pelo Channel 4. Aqui ocorreu uma situação na qual cada lado dá sua versão.
Para o Channel 4, ainda estavam em andamento as negociações para dar continuidade à série; para a Endemol Shine, que distribui a produção, o Channel 4 desperdiçou todas as oportunidades de renovar Black Mirror ou de coproduzir uma nova temporada. Razão pela qual teria aceitado a oferta de (dizem os rumores) 40 milhões de dólares feita pelo Netflix para produzir a terceira temporada. Para Brooker, o Netflix representa a liberdade de criar e desenvolver histórias sem se preocupar com os números da audiência (imposta por um canal de televisão).
Quando Black Mirror migrou para o Netflix, foram encomendados doze episódios, os quais foram divididos em duas temporadas de seis episódios (portanto, a quarta já está garantida).
A primeira temporada produzida para o Netflix traz uma visão menos sombria do uso das novas tecnologias. Embora ainda explore a ideia de que elas podem prejudicar a forma como o ser humano percebe a realidade caso não sejam utilizadas com consciência, os episódios são capazes de oferecer alternativas que dão aos personagens uma oportunidade de realmente sair da situação em que se encontram.
Os comentários contêm spoilers dos episódios da terceira temporada.
Por se limitar a um único tema (os efeitos colaterais das novas tecnologias), a série repete situações ou propostas, mas variando em sua abordagem e desenvolvimento de histórias.
Temos como exemplo o primeiro episódio da terceira temporada, que recebeu o título de Nosedive, uma sátira à influência das redes sociais na vida das pessoas. O roteiro consegue estabelecer o mundo no qual a avaliação que hoje fazemos de serviços, bem como as curtidas que são dadas nas redes sociais, foram transformadas em ‘uma moeda de troca’ na vida real. Isto faz com que identifiquemos facilmente as motivações dos personagens, seu ponto de vista, atitudes e a sua catarse.
A situação de Lacie (Bruce Dallas Howard, filha de Ron Howard) é semelhante ao dos personagens de Fifteen Million Merits, segundo episódio da primeira temporada de Black Mirror, o qual é uma sátira aos programas de reality show. Aqui as pessoas precisam adquirir créditos para conseguir se elevar socialmente, sendo que esses créditos são adquiridos assistindo a programas de entretenimento e comerciais, bem como participando de reality shows.
Em Nosedive, cada encontro com uma pessoa revela sua classificação. Aqueles com uma posição mais próxima de cinco tem uma qualidade de vida melhor que aquelas mais próximas de zero. A medição é institucionalizada, o que leva as pessoas a temerem dizer o que pensam e o que sentem para não perder seus pontos (e as vantagens conquistadas). Também estimula a ascensão social através da falsa percepção de um mundo criado pelas aparências.
Nesta sociedade ‘perfeita’, que se vê obrigada a ser superficial, agradável e polida, como se não tivesse nenhum problema e aceitasse uns aos outros sem restrições, as pessoas são, de alguma forma, punidas por sua individualidade e por sua liberdade de expressão. Mas cada pessoa tem, no entanto, uma opção: aceitar viver dentro deste sistema ou à margem. Basta fazer sua escolha e viver com as consequências que ela traz.
O segundo episódio adota o gênero terror, embora não chegue ao ponto de aterrorizar o público, apenas o personagem. Apesar de ter uma boa proposta, este é o episódio mais fraco da temporada.
Cooper (Wyatt Russell, filho de Goldie Hawn e Kurt Russell), um jovem americano que, após passar um tempo cuidando do pai, recém falecido, decide viajar pelo mundo, se distanciando da mãe.
Determinado a fugir de seus problemas, Cooper se oferece a uma empresa de video games para testar um novo produto de realidade virtual. Ironicamente, o que parecia ser uma diversão que lhe renderia um bom dinheiro, se transforma em uma prisão que o obriga a enfrentar seus mais profundos medos.
O aparelho penetra em sua mente, identificando seus temores e ampliando-os. Assim, Cooper se vê preso em um mundo onde gradualmente perde a capacidade de distinguir o que é real e o que não é. Seus medos controlaram sua vida, determinaram sua trajetória e o levaram ao seu destino.
O terceiro episódio também é fraco e 100% previsível, incluindo o final, apesar de ter um roteiro enxuto que oferece um bom desdobramento da ação proposta. O episódio parece o cruzamento de duas histórias de Além da Imaginação. O primeiro é Nick of Time, no qual o personagem determina suas ações a partir das respostas dadas por uma máquina que prevê o futuro; e o segundo é Button, Button, produzido para a versão da década de 1980 da série, no qual uma mulher tem a oportunidade de ganhar uma grande soma em dinheiro se apertar um botão, matando uma pessoa desconhecida. Ao fazê-lo, ela se coloca como uma das próximas vítimas de alguém que poderá ou não fazer o mesmo.
Em Black Mirror, o episódio gira em torno de Kenny (Alex Lawther), um jovem que é filmado em seu quarto se masturbando diante de imagens de crianças. Ameaçado de ter seu vídeo divulgado na Internet, ele é obrigado a seguir as instruções dos chantagistas (Nick of Time), que o levam a cometer mais crimes, sempre recebendo o auxílio de outros que estão na mesma situação que ele (Button, Button).
O episódio mais frustrante da temporada é San Junipero; não por ser ruim, mas por terminar quando a história estava na metade, sem ter explorado o debate entre religião x ciência, ou sequer ter levantado dúvidas sobre as questões políticas e econômicas de se manter uma ‘nuvem de almas’ ativa por sabe-se lá quanto tempo. Ao invés disso, o episódio se limita a narrar um romance anos 80, nos oferecendo mais um final Telma & Louise para a nossa coleção.
O melhor episódio da temporada é Men Against Fire, que pode ser considerado como uma crítica direta à forma como determinados segmentos da sociedade se opõem à imigração em massa que vem ocorrendo em diversos países do mundo, especialmente na Europa; ou uma crítica ao preconceito de uma forma geral, que leva pessoas a se acharem superiores a outras.
Na história, que remonta ao nazismo, militares americanos mantêm a ordem em um país estrangeiro. A missão destes soldados é a de eliminar um segmento da sociedade que é considerado indesejável por trazer em seu DNA disposição para doenças e vícios.
Para que os soldados possam realizar suas funções sem uma interferência moral, é implantado em seus cérebros um dispositivo que controla seus sentidos, o que os leva a enxergar suas vítimas como monstros (fisicamente falando). Este dispositivo também controla seus sonhos e suas habilidades com as armas.
Stripe (Malachi Kirby, do remake de Roots), um dos militares, tem seu implante danificado, o que o leva a perceber que está contribuindo com um genocídio institucionalizado. Mas, enquanto o governo trata a percepção humana da realidade como um vírus, que precisa ser eliminado e controlado através da tecnologia, o episódio levanta outro questionamento.
Os civis não tem implantes (ou acesso a qualquer tecnologia) para alterar sua percepção, o que significa que eles aceitam com naturalidade esta seleção. Quem é mais criminoso, o governo que pratica o ato ou o povo que permite esta prática?
O último episódio da temporada é Hated in the Nation, uma história policial que poderia facilmente gerar uma spinoff. A história tem 90 minutos de duração e também remonta ao episódio Button, Button de Além da Imaginação, mas com o adendo de que faz uma boa referência ao filme Os Pássaros, de Alfred Hitchcock.
A trama acompanha os trabalhos da detetive Karin Parke (Kelly Macdonald, de Boardwalk Empire). Ela investiga crimes que estão sendo praticados a partir de mensagens de ódio divulgadas no Twitter. Estas mensagens são reproduzidas em hashtag pelos usuários como se fosse um jogo ou uma piada que não teria consequências reais. Mas as consequências são justamente a razão do jogo existir.
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