Série ‘A Queda da Casa de Usher’ traz Edgar Allan Poe para a atualidade
O diretor Mike Flanagan prova que os contos do escritor têm muito a dizer sobre o cinismo na era das redes
Filho caçula do magnata Roderick Usher (Bruce Greenwood), o jovem Perry (Sauriyan Sapkota) comporta-se como legítimo herdeiro mimado: enquanto mete os pés pelas mãos nos negócios do clã, o rapaz exprime seu narcisismo em raves movidas a drogas sintéticas e sexo — nas quais seu esporte é demonstrar poder sobre os corpos ao redor. Mas, certa noite, uma loiraça misteriosa usando uma máscara de caveira surge na festa para atiçá-lo — e desafiar seu ego. As consequências macabras do encontro estabelecem uma conexão imediata entre A Queda da Casa de Usher e o universo que a minissérie recém-lançada na Netflix deseja transpor para a realidade atual: a obra do mestre do terror Edgar Allan Poe (1809-1849).
O diretor e roteirista Mike Flanagan vale-se de um artifício engenhoso para esse fim. Sua série dialoga com a trama do conto célebre de Poe que lhe dá título ao narrar a saga da família Usher — que enriqueceu nos Estados Unidos de hoje explorando sem escrúpulos o mercado de drogas opioides, mas carrega uma maldição. A cada episódio, Flanagan usa um conto do escritor americano para expor as desventuras dos filhos do patriarca. A história da loiraça que se revela fatal refere-se ao clássico A Máscara da Morte Vermelha. De Os Assassinatos da Rua Morgue a O Gato Preto, a série segue promovendo um cruzamento das histórias saídas da mente perversa de Poe com uma trama sobre ricaços podres à la Succession.
A premissa é original, mas Flanagan — um dos grandes expoentes do novo terror — perde-se muitas vezes em meio à verborragia e ao sentimentalismo. É como se certo humanismo que ele injetou no gênero em produções como Missa da Meia-Noite se mostrasse aqui uma ingenuidade diversionista capaz de nublar a crueldade tão acachapante na obra de Poe.
De qualquer forma, a série cumpre sua missão principal: mostrar que os contos e poemas do autor não só continuam potentes, como têm algo a dizer sobre os medos contemporâneos. Poe morreu em Baltimore há mais de 150 anos, enterrado sem lápide nem cerimônia, mas ainda faz a cabeça dos leitores — e seu legado nutre o cinema e a ficção até hoje. Agora, Flanagan aplica os componentes que insuflam o pavor no mundo de Poe — a consciência pesada, as falhas de caráter e a dubiedade moral — à nossa era de exibicionismo vazio e cinismo exacerbado nas redes sociais. Não à toa, há personagens que remetem a Elon Musk e à guru do bem-estar Gwyneth Paltrow, entre outras figuras duvidosas. O resultado fica aquém de Poe, mas prova que seus pesadelos clássicos estão por aí, vivíssimos e assustadores.
Publicado em VEJA de 13 de outubro de 2023, edição nº 2863