‘Santa Evita’ expõe culto macabro de ícone populista morta há 70 anos
A bizarra história do cadáver de Eva Perón é um lado menos conhecido do mito — e o que melhor escancara a natureza delirante do populismo na América Latina
Na tarde chuvosa de 26 de julho de 1952, María Eva Duarte de Perón, primeira-dama da Argentina, mal consegue se levantar da cama. Mesmo diante do pedido da enfermeira para permanecer deitada, ela se ergue e, com dificuldade, vai até a janela do quarto e escuta orações fervorosas vindas da multidão em frente à residência presidencial. A essa altura, porém, ela já estava conformada com seu destino. Horas depois, no mesmo dia, Evita morreu, aos 33 anos, em consequência de um câncer de colo uterino agressivo. O que parecia uma saída de cena na realidade foi só o começo de uma odisseia envolvendo o culto e até o “sequestro” de seu corpo. Essa trama macabra, mas real, é contada em Santa Evita (Argentina, 2022), série original do Star+ que chega ao streaming mundialmente na terça-feira 26, data que marca o septuagésimo aniversário da morte da ex-primeira-dama.
A figura de Eva Perón permanece intacta no imaginário dos argentinos. Ela é um símbolo do populismo inebriante do país na década de 40, quando chegou a ser mais popular que o próprio marido e passou à história local como a “mãe dos descamisados”. O colombiano Rodrigo García, filho de Gabriel García Márquez e um dos diretores da série, sentiu desde o começo das gravações o peso de narrar a vida de um ícone (ou assombração) ainda tão presente no país. “No começo, estava preocupado em ser um estranho explicando Eva Perón aos argentinos”, disse a VEJA. A intérprete de Evita, Natalia Oreiro, que é uruguaia (santa heresia), enfrentou dilema parecido. “Ela é a mulher mais importante de toda a história política argentina e, ouso dizer, do mundo. Mas tive liberdade para encontrar minha própria Eva”, conta.
Há tempos, é fato, Evita extrapolou as fronteiras da Argentina para se converter em elemento da cultura pop, desde o clássico musical britânico de Tim Rice e Andrew Lloyd Webber, atualmente com uma montagem ao ar livre em São Paulo, até filmes como o protagonizado por Madonna em 1996. A bizarra história do cadáver de Eva Perón é um lado menos conhecido do mito — ainda que talvez seja aquele que melhor escancara a natureza delirante do populismo na América Latina. Baseada no livro homônimo de 1995 em que o escritor argentino Tomás Eloy Martínez (1934-2010) faz um primoroso resumo do fenômeno, a série caminha entre ficção e realidade para imaginar o que teria acontecido após o corpo de Evita ter sido roubado por militares, na esteira da deposição de Juan Domingo Perón (1895-1974), seu marido e presidente, por um golpe militar em 1955.
Com a morte da esposa, Perón decidiu embalsamá-la. O corpo foi preparado pelo anatomista espanhol Pedro Ara — que a tornou, como ele mesmo dizia, “incorruptível”. Os restos de Evita foram então transferidos para a sede sindical dos peronistas no país, e ficariam lá até que um mausoléu maior que a Estátua da Liberdade fosse construído para abrigá-los.
Só que o projeto nunca saiu do papel. Ao ser derrubado, em 1955, Perón foi para o exílio em Madri, na Espanha. O general que assumiu as rédeas da Argentina, Pedro Eugênio Aramburu, temia que a múmia virasse símbolo de resistência e mandou enterrá-la longe dos olhos do povo. Só não contava com a desobediência do coronel Carlos Eugenio de Moori Koenig, responsável pelo sequestro do corpo. A obsessão de Koening por Evita atingiu níveis surreais. Ele perambulou com a defunta por Buenos Aires, escondeu-a no cinema Rialto e, depois, no sótão da casa de um amigo. A parada final foi o escritório da Inteligência do Exército. Comentava-se entre fardados que Koenig desenvolvera uma paixão necrófila por Evita.
Por onde a múmia passava, os peronistas deixavam flores para mostrar que sabiam o paradeiro de sua santa. Com a tensão crescente, Aramburu pediu a outro militar para dar fim ao corpo. Teve ajuda da Igreja Católica a fim de despachá-lo para a Itália, onde seria enterrado com nome falso em 1957. Em 1971, após o assassinato de Aramburu, o cadáver acabou devolvido a Perón, em Madri. Três anos depois, com a morte do político, foi levado de volta à Argentina por Isabelita Perón, terceira esposa do caudilho e então presidente. Evita foi enterrada junto com o marido na residência presidencial de Olivos. Em 1976, mais um lance da novela lúgubre: ao derrubar Isabelita, os militares devolveram o corpo de Evita às suas irmãs, que a sepultaram no Cemitério da Recoleta. Lá ela jaz hoje a 6 metros de profundidade — mas ainda vivíssima.
Publicado em VEJA de 27 de julho de 2022, edição nº 2799
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