Uma mulher apaixonada se envolve com um homem sedutor. Ela não sabe que, na realidade, ele pretende roubá-la. E que, para isso, o garanhão vai mexer com suas emoções e sanidade. Para piorar, no final, ele ainda usará as desconfianças da mulher para taxá-la de louca. O roteiro é o mesmo do golpe elaboradíssimo de Simon Leviev, nome usado por Shimon Hayut, apresentado no documentário O Golpista do Tinder, da Netflix. A prática, porém, está longe de ser nova – e tem até um termo bem conhecido no inglês para isso: o gaslighting, traduzido para o português de forma livre como manipulação emocional.
O termo veio à tona recentemente com o Big Brother Brasil 22, quando os administradores da rede social da participante Jade Picon repostaram uma análise feita pela psicanalista Manuela Xavier (veja post abaixo), afirmando que a moça vem sofrendo gaslighting na casa por parte de Arthur Aguiar, acusado de intimidá-la — nem sempre os agentes dessa prática são um casal, mas, na maioria das vezes, se tratam de um homem e uma mulher. Enquanto isso, bem longe do BBB22, Leviev, que está livre da prisão, vem tentando inverter a história do documentário da Netflix, tratando suas vítimas como loucas, mentirosas e manipuladoras – apesar das muitas evidências contra ele.
Curiosamente, o termo gaslighting vem da ficção. Em 1938, estreou em Londres a peça Gas Light, um thriller assinado pelo dramaturgo Patrick Hamilton (1904-1958), no qual um homem tenta enlouquecer a mulher para roubá-la. Apesar de ter ficado apenas seis meses em cartaz, a peça foi adaptada em dois filmes de sucesso, um britânico, em 1940, e outro americano, em 1944, com Ingrid Bergman e indicado a sete categorias no Oscar.
Na trama, um casal no século XIX se adapta em uma nova casa após o matrimônio. No local, o homem faz de tudo para mexer com a sanidade da esposa, com o intuito de declará-la incapaz e, assim, ter direito sobre todos os bens dela – especialmente sobre uma casa da família da moça, onde ele, no passado, escondeu joias após assassinar a esposa da época. Para atingir a estrutura emocional da esposa, ele mexe na estrutura da casa. Retira pequenos objetos de um local, cobra a mulher sobre onde eles estão, e, depois, os devolve ao mesmo lugar. Ele ainda mexe nas lamparinas – sistema chamado de gas light em inglês – e quando ela reclama que a iluminação está baixa, ele diz que nada mudou, e que ela está vendo coisas.
Para além desses truques tenebrosos, o homem age de um modo mais próximo do comportamento masculino hoje atrelado ao termo. Ele flerta com outras mulheres e, quando a esposa reclama, diz que ela está louca, que estava apenas sendo simpático. Ele ainda a isola do mundo por ciúme e afasta amigos e familiares, com a desculpa de que está cuidando dela. Por sorte, a protagonista é salva por um detetive no encalço do criminoso.
Na vida real, a solução não é tão simples. O dano emocional causado pela prática mina a autoestima das vítimas, impedindo que elas se desenvolvam em diversas áreas da vida. Vale lembrar que mulheres, geralmente, crescem educadas para pertencer a um núcleo familiar – primeiro como filha, depois como esposa. Assim, fica mais fácil entender como as vítimas de O Golpista do Tinder, todas de classe média e bem-educadas, acabaram presas na teia de manipulação do enganador, que prometia romance, aventura e estabilidade.
No Brasil, a prática chamada de violência psicológica é crime previsto em lei desde agosto de 2021. A vítima precisa, além de reconhecer que é uma vítima, apresentar provas e passar por uma análise psicológica antes de fazer uma denúncia. O processo não é fácil, mas é um começo.