“Existem apenas duas indústrias que chamam seus clientes de usuários: a de drogas e a de software”. A fala do professor de estatística Edward Tufte, da Universidade de Yale, é uma das frases de efeito destacadas pelo documentário O Dilema das Redes, nova produção da Netflix que aqueceu debates neste fim de semana justamente – onde mais? – nas redes sociais. O alto potencial viciante de aplicativos como Facebook, Instagram, Twitter e WhatsApp é o cerne do filme que destrincha os bastidores de funcionamento destes programas e como eles, ao contrário de sua razão de ser, que seria conectar pessoas, aumentaram a divisão, a polarização e a radicalização. A produção examina desde os perigos das redes para a saúde mental de adolescentes até a propagação de fake news, e a ascensão ao poder de populistas de direita como o brasileiro Jair Bolsonaro.
Dirigido pelo documentarista americano Jeff Orlowski, o filme começa de forma provocativa. Antigos funcionários de empresas como as citadas acima, além da superpoderosa Google e da aparentemente inofensiva Pinterest, são colocados diante das câmeras para responder o que faziam nessas companhias e por que saíram delas. As respostas coincidem: os desligamentos foram motivados por questões éticas pessoais. Alguns estão claramente nervosos em dar seu depoimento. Um dos personagens ri, apreensivo, dizendo que só vinha se comunicando através de advogados por quase um ano. O espectador do documentário está, então, pronto e atento para ouvir a razão de tanto arrependimento da parte de mentes brilhantes que, para o bem e para o mal, fizeram das redes um ambiente comum indispensável de se viver no século XXI.
Ao longo de sua primeira metade, o documentário destrincha informações que não são uma grande novidade aos que já se interessam minimamente pelo assunto. Basicamente, as empresas de tecnologia lucram transformando o próprio usuário em produto. Seus hábitos, gostos, desejos, tristezas, crenças – tudo é coletado por sistemas de inteligência artificial hoje amplamente conhecidos como algoritmos. Com estes dados, as redes sociais indicam de forma personalizada a cada pessoa desde opções de entretenimento e contato com outros indivíduos, até produtos e propagandas que induzem ao consumo. O documentário da Netflix se destaca de outros do tipo ao explicar de forma didática esse intrincado funcionamento, com a ajuda de especialistas em tecnologia e saúde mental, além de uma representação fictícia de uma família afetada pelo sistema.
Em sua segunda metade, o filme esquenta e revela de fato o campo minado onde a humanidade se enfiou sem olhar para o chão — e com a cara na tela do celular. Os antigos funcionários passam a falar sobre os efeitos negativos que os incomodaram na chamada tecnologia persuasiva, que instiga o usuário a agir conforme os algoritmos sugerem que ele deva agir. A partir da necessidade humana de se conectar com outras pessoas, o que leva à busca obsessiva por aprovação e adequação, adolescentes nascidos entre o fim dos anos 1990 e começo dos anos 2000 se tornaram parte de um aumento das estatísticas de casos de depressão e taxas de suicídio.
Daí em diante, o clima de pesadelo do documentário só aumenta. Segundo estes profissionais, o modelo de negócio das redes sociais lucra com a desinformação, já que notícias falsas tendem a se espalhar seis vezes mais rápido que as verdadeiras. Teorias conspiratórias aliciam cada vez mais pessoas. E em um mundo sem diálogos, em que a sociedade se mostra incapaz de discernir com o que é verdade e o que não é, o caos ganha espaço.
O genocídio de uma minoria étnica em Myanmar, em 2018, encontra vestígios na força do Facebook no país e na propagação de fake news. Conflitos em protestos nas ruas, da Europa aos Estados Unidos, costumam ser iniciados nas redes. A ascensão no mundo de políticos de extrema-esquerda e extrema-direita, como Jair Bolsonaro no Brasil, é ligada diretamente ao fenômeno das redes sociais – isso dito pela boca dos próprios que ajudaram a colocar essas redes de pé. O que parecia inofensivo se mostrou devastador. E seus idealizadores, agora, se movimentam para alertar a população. Se é que ainda dá tempo de reverter seus duros efeitos.