‘Nos Tempos do Imperador’ mirou no antirracismo, mas errou feio o alvo
Novela causou controvérsia com cena de 'racismo reverso' e pelo trato leviano e improvável da relação inter-racial do casal protagonista
Em seu episódio de estreia, a novela Nos Tempos do Imperador demonstrou que não se apegaria aos fatos históricos — aquele encontro entre D. Pedro II (Selton Mello) e Solano López (Roberto Birindelli0), o estopim da trama, nunca aconteceu na realidade. Mas dava até para fazer vista grossa, já que o roteiro parecia compensar os deslizes com um vislumbre de que teria um posicionamento diferente da representação típica da escravidão brasileira na ficção, na qual os cativos eram submissos e sempre à sombra de heróis brancos. Menos de um mês depois, porém, o folhetim mostrou que não estava tão afinado como se esperava.
Apesar de ser uma trama da faixa das 6, que exige certo tom de humor e de leveza romântica, Nos Tempos do Imperador exagerou ao imaginar o açucarado casal inter-racial Pilar (Gabriela Medvedovski) e Samuel (Michel Gomes). O primeiro beijo da dupla aconteceu em público, no meio de uma rua do Rio de Janeiro, com alguns poucos olhares desconfiados ao redor. Ao pedi-la em namoro, o jovem, um escravo fugitivo, recebe um não, ao que ele questiona: “Por que eu sou preto?”. Ao que a moça, branca, filha de um coronel do século XIX, diz exibindo surpresa: “Claro que não”. Segundo ela, nunca deixaria de se relacionar com alguém pela cor de sua pele. Por mais fofa que a cena pareça, a reação de Pilar em nada condiz com a época — o que ofusca a realidade de um preconceito vigente até hoje. Mais honesto seria se ela de fato enfrentasse uma luta interna sobre a raríssima relação inter-racial.
Não que relacionamentos entre negros e brancos não existissem no Brasil imperial, mas a maior parte deles se dava entre senhores de engenho e suas escravas, muitas vezes de maneira forçada — embora também existam relatos de uniões aparentemente consensuais com negras alforriadas. A situação inversa era mais complicada: naquela época, mulheres brancas se casavam ainda muito jovens com homens mais velhos (e brancos, naturalmente), de maneira arranjada. A diferença de idade fazia com que algumas sinhás recorressem a escravos com quem conviveram desde a infância para suprir anseios sexuais. Claro, a relação tinha de ser secreta, ou era sumariamente punida, como relata o livro de 1903 America Latina: Males de Origem, do médico e historiador Manoel Bomfim: “Castra-se, com uma faca mal afiada o negro ou o mulato, salga-se a ferida, enterram-no vivo depois. A rapariga, com um dote reforçado, casa com um primo pobre”.
Além da ameaça constante dos brancos, que sequer enxergavam os escravos como humanos, a relação de Samuel e Pilar também sofreria oposição por parte dos negros. O pesquisador Fernando Granato, autor de Bahia de Todos os Negros, que acaba de ser lançado pela editora Intrínseca, se debruçou por mais de uma década sobre as revoltas de escravos durante o Império brasileiro, e diz que o africano puro não se relacionava com brancos. “Quase não havia relação entre negros e outras etnias no Brasil, então esse romance [da novela] é extremamente improvável,” descreve ele. O autor ainda aponta que os malês, negros muçulmanos amigos de Samuel, não se relacionavam nem sequer com o negros miscigenados — que é justamente o caso do personagem de Michel Gomes, filho de uma escrava negra e de um coronel branco.
O romance digno de uma fantasia caiu na malha fina das redes sociais após uma infeliz cena exibida no sábado, 21. Na sequência, Dom Olu (Rogério Brito), rei da Pequena África, nega estadia a Pilar dizendo que ela é uma moça branca e teria mais facilidade de encontrar um lugar para ficar, já que a Pequena África é um refúgio para negros alforriados, e assim deveria permanecer. Irritado com a decisão do líder, Samuel dispara à amada: “Só por que você é branca não pode morar na Pequena África? Como queremos ter os mesmos direitos se fazemos com os brancos as mesmas coisas que eles fazem com a gente?”.
A falsa simetria incomodou, já que negar estadia a alguém é bem, mas bem diferente de tratar pessoas como propriedade e escravizá-las. Em uma publicação no Instagram, AD Junior, ativista e apresentador do programa Trace Trends no Multishow e Globoplay, compartilhou a cena, e criticou o desenvolvimento do casal. “Pessoas negras viviam em regime de exceção. Um homem preto sentado num banco de uma praça com uma mulher branca seria um ET que está visitando a sua namorada em Marte”, comparou ele, que recebeu o apoio de uma série de celebridades, incluindo atores globais como Ícaro Silva, Fabíula Nascimento e Shirley Cruz.
A repercussão fez Thereza Falcão, autora da novela, se desculpar. Ela descreveu a cena como um “erro grotesco” e disse também ter ficado incomodada com o diálogo, mas justificou que a passagem foi escrita e gravada entre 2018 e 2019, época em que ainda não havia uma assessoria especializada em questões raciais na equipe. Rumores sugerem que cenas já gravadas da novela, que adiantou o ritmo de gravação de seus capítulos por causa da pandemia, serão editadas para evitar situações parecidas. Tomara.