Num mercado de rua em Hong Kong, o frenesi de vendedores e transeuntes sintetiza o caldeirão cultural que define a ilha chinesa. Barulhento, o ambiente não é o favorito da americana Margaret (Nicole Kidman), mas é do agrado de seus três filhos pequenos e, logo, acaba sendo o lugar escolhido para testar a potencial babá Mercy (Ji-young Yoo) — também nativa dos Estados Unidos, porém, de origem coreana. Separada momentaneamente da possível patroa, a candidata tem de observar o caçula da família em frente a um camelô de brinquedos chamativos. Mas, ao soltar a mão do menino por um instante, ele desaparece. A partir da trágica entrevista de emprego, Margaret parte em busca do filho enquanto a jovem é esmagada pela culpa, dando vazão aos conflitos de Expats, minissérie que acaba de chegar ao Prime Video.
A produção parte do mesmo tipo de drama doméstico que vem marcando a carreira de Kidman na TV, de Big Little Lies a The Undoing. Mas a abrangência de seu escopo é inevitavelmente afetada pelo cenário: uma região tensionada pela desigualdade e pelo furor político. Indo além do cotidiano das expatriadas anglófonas de alta classe, a narrativa expõe os problemas da sociedade local já na escolha do ano em que se passa: 2014, tempo da “Revolta dos Guarda-Chuvas”, protesto por sufrágio universal na ex-colônia britânica democrática absorvida pela ditadura comunista. “Como alguém que migrou da China em 1989, meu silêncio seria uma forma de autocensura e uma declaração ruidosa demais”, disse a VEJA a diretora e roteirista Lulu Wang.
Para entrar no projeto, ela exigiu carta-branca para dirigir o penúltimo episódio, Central, como um filme autônomo de mais de 90 minutos. Nele, as lentes desviam-se das protagonistas para enquadrar as figuras periféricas: empregadas filipinas, jovens militantes e esposas tradicionais. A escolha ousada dinamiza a história e dribla qualquer chance de ser acusada de “simplismo americano” sobre a complexa política de Hong Kong.
Nos seis episódios, Wang e o elenco hábil destrincham tradições patriarcais, o crescimento urbano desenfreado e a impotência frente aos perigos do cotidiano sem recorrer a vilões ou ao dramalhão novelesco. Como diz a cineasta, afinal, todas as vivências representadas “simplesmente existem” e “ninguém escolhe as circunstâncias sob as quais nasce”. Universal, por outro lado, é a desorientação sentida pelas personagens — imigrantes ou não, ricas ou pobres, jovens ou maduras. Em Expats, os infortúnios íntimos não podem ser separados do mundo ao redor.
Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2024, edição nº 2877