Jurado Nº2: Clint Eastwood é fiel a si mesmo em seu possível último filme
Longa revela-se perfeitamente sintonizado com sua cinematografia e talvez seja seu belo epitáfio
Na mesa de um bar em algum rincão da Geórgia, Justin Kemp chora as mágoas por razões compreensíveis. Jornalista medíocre, ele viu seus problemas pessoais — inclusive com a lei — se avolumarem por causa do alcoolismo. Agora, solitário diante de uma dose de uísque, está perto de uma recaída. Kemp resiste à tentação, mas deixa o lugar transtornado — e, na noite chuvosa, só cai em si quando seu carro se choca com algo que não teve a chance de ver, já que o objeto (ou corpo) atingido foi lançado ribanceira abaixo até sumir de vista. Deve ter sido um cervo, imagina. No momento em que se inicia a trama de Jurado Nº 2, novo filme dirigido por Clint Eastwood, que chega ao streaming Max na sexta-feira 20, o personagem, encarnado com torrentes de aflição e desconsolo por Nicholas Hoult, atravessa uma fase futura mais otimista. Sua esposa está prestes a dar à luz, superando o trauma da primeira gravidez malsucedida. Ele dá os retoques finais no quarto do bebê quando é convocado para integrar o júri de um caso criminal. Ser chamado para a tarefa pública é situação corriqueira para muitos americanos. Mas aqui a experiência contém uma trágica ironia: o julgamento vai trazer o acidente de volta para assombrar sua vida.
Daí em diante, o que se vê na tela é o típico exame moral — sóbrio, mas implacável — celebrizado nos filmes de Eastwood. Os dilemas do que chamamos de justiça, num âmbito individual ou coletivo, são afinal um tema que perseguiu o ator e diretor ao longo de sua excepcional carreira. De início, aplicando-a com as próprias mãos, como o pistoleiro da trilogia de westerns do italiano Sergio Leone iniciada pelo antológico Por um Punhado de Dólares (1964) — ou fazendo-a valer, por meios temerários, nos filmes do policial Dirty Harry. Nos mais de quarenta longas que dirigiu, Clint explorou o assunto de maneira ampla e filosófica. No sucesso Menina de Ouro (2004), o que está em jogo, em última instância, é o quanto não só o esporte, mas a própria vida é justa. A ética e a justeza da guerra estão em debate em filmes como Sniper Americano (2014). No recente O Caso Richard Jewell (2019) é a vez de o sistema judicial ser posto em xeque.
Jurado Nº 2 revela-se perfeitamente sintonizado com essa cinematografia e talvez seja seu belo epitáfio: Eastwood já está com 94 anos, o que torna este, potencialmente, seu último trabalho. Ainda que o bravo negue: tão logo saiu das filmagens, ele anunciou que já analisa outros roteiros. Embora alquebrado, fato é que o velho Eastwood conserva seu olhar afiado. O protagonista do novo filme surge em encruzilhada quase épica: ele se remói ao perceber que um homem pode ser condenado injustamente por matar a namorada que, na verdade, talvez tenha sido atropelada por ele naquela noite na estrada. À dúvida sobre sua real participação se soma o medo: seu histórico de problemas por dirigir bêbado o tornaria passível de uma pena brava se assumisse a culpa. O ambiente favorece também a injustiça: a promotora Faith Killebrew (Toni Collette) força a condenação do namorado da vítima por buscar os holofotes para se eleger procuradora com um caso de feminicídio.
Mesmo dispondo de um orçamento espartano para Hollywood, na casa dos 30 milhões de dólares, Eastwood compensa a falta de cenários vistosos com um elenco matador — que inclui, além de Collette e Hoult, o pop Kiefer Sutherland na pele do tutor do protagonista nos Alcoólicos Anônimos. Mas nem a grife do cineasta em sua virtual despedida nem o elenco estrelado foram suficientes para que se apostassem mais que uns punhados de dólares no lançamento do filme. Jurado Nº 2 estreou em muitos países apenas no streaming — e só chegou a ínfimas 35 salas de exibição nos Estados Unidos. O mau desempenho nas bilheterias de seu filme anterior, Cry Macho, é apontado como causa desse tratamento desdenhoso. Mas o ocaso do astro diz mais sobre os estranhos rumos do entretenimento (e do mundo) que sobre a qualidade de seu trabalho.
Numa época de veredictos sumários nas redes sociais, a matéria-prima de seus filmes — a incerteza moral — já não tem o apelo de outrora: tornou-se um elemento incômodo e inconveniente. Não ajuda muito que Eastwood seja um republicano à moda antiga, que apoiou Donald Trump em sua primeira eleição, em 2016, mas depois não mais; ou que seja, ainda, um sincerão que se confessa “cansado” do politicamente correto. Indiferente a esses fluxos das paixões humanas, o caubói atravessa o inverno de sua carreira sendo implacavelmente fiel a si mesmo.
Publicado em VEJA de 13 de dezembro de 2024, edição nº 2923