Durante cinco dias de agosto de 2005, a doutora Anna Pou (Vera Farmiga) se vê na linha de frente de um pesadelo brutal. Seu hospital, o Memorial Medical Center, encontra-se ilhado pelas águas após a passagem do furacão Katrina por Nova Orleans, na Louisiana. Cerca de 80% da área da cidade está devastada na esteira do vendaval e de enchentes, e há falta de energia, comida e água. No pronto-socorro, a tragédia bate em todo o seu horror: brotam por todos os lados feridos no desastre natural que produziria 1 800 mortos. Diante disso, a doutora Pou toma uma decisão controversa: administrar morfina e sedativos fortes àqueles que tinham poucas chances de sobreviver. A ação da médica, sob a justificativa de centrar esforços na salvação de pacientes em melhores condições, provoca a morte antecipada de ao menos vinte pessoas, cujos corpos seriam descobertos no hospital após o escoamento das águas. A eutanásia coletiva é só um dos lances terríveis da vida real recontados na impactante Cinco Dias no Hospital Memorial (Five Days at Memorial, Estados Unidos, 2022), minissérie disponível na Apple TV+.
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O furacão Katrina é considerado o terceiro pior da história dos Estados Unidos, mas também aquele que provocou a tempestade mais letal registrada no país, além de causar um prejuízo de 108 bilhões de dólares. Foi, sobretudo, um evento que expôs sem filtros as mazelas sociais americanas, com os amplos subúrbios pobres habitados em sua maioria por negros sendo especialmente atingidos pelo furacão de categoria 3 na escala Saffir-Simpson (que vai de 1 a 5), com ventos de até 280 quilômetros por hora. Diretamente afetado, o Memorial não tinha nenhum plano previamente traçado para uma situação daquelas, obrigando a diretoria a improvisar cuidados e a gerenciar os resgates, atrasados pela empresa que administrava a instituição e também pelo próprio governo americano.
Na série, um guarda costeiro chega ao hospital no quarto dia em que o Memorial permanecia ilhado e ordena à diretora Susan Mulderick que use pulseiras de triagem para escolher os mais aptos a sobreviver. “É assim que vamos decidir quem vive e quem morre? Pela cor da pulseira?”, questiona ela. Em entrevista a VEJA, a atriz Cherry Jones, intérprete da diretora, diz que nem imagina o que faria em uma situação caótica como a vivida pela equipe médica e reconhece a valentia da personagem. “É um senso de responsabilidade muito grande representar tragédias assim, porque você está lidando com tantas almas que foram e que ficaram”, avalia a atriz.
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O hospital foi palco de cenas tenebrosas: pessoas buscando abrigo, doentes lutando para sobreviver, falta de recursos, saques e desespero em meio às incertezas. Havia um andar de pacientes de risco, em cuidados paliativos ou à espera de um resgate que nunca vinha para realizar cirurgias. Em uma das cenas mais pungentes e desesperadoras da minissérie, médicos e enfermeiros correm com incubadoras pelos corredores caóticos para levar bebês internados até o terraço, onde deveriam ser resgatados por helicóptero. Com imagens de arquivo, a produção expõe como o governo americano, liderado à época por George W. Bush, se mostrou frio e impotente diante da tragédia humana. Vera Farmiga disse a VEJA que entende por que a doutora Pou, sua personagem, apelou à eutanásia de pacientes. “Eu quis mostrar a força e as vulnerabilidades daquela médica de uma forma que a audiência entenda o que a levou a fazer o que fez”, explica.
Cinco Dias no Hospital Memorial é um lembrete de que a natureza pode ser devastadora, mas o homem consegue às vezes ser ainda mais cruel ao reagir às intempéries. Com histórias que embrulham o estômago, a minissérie de oito capítulos leva o espectador ao questionamento: o que você faria se tivesse de tomar decisões críticas no olho do furacão? É difícil atravessar a trama sem ir às lágrimas e não se indignar ao ver como até a maior potência do mundo foi incompetente no enfrentamento de uma crise humanitária. O vendaval passou, mas seus traumas ainda assombram.
Publicado em VEJA de 17 de agosto de 2022, edição nº 2802
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