Para os fãs de automobilismo, sobretudo os mais nostálgicos, a badalada série da Netflix sobre a vida de Ayrton Senna é um show de velocidade — e entrega o que dela se esperava no circuito esportivo. As réplicas de carros antigos das competições, tanto das categorias de acesso quando os da F1, assim como as tomadas de corridas, cheias de closes mostrando como eram os tempos em que não havia quase nenhuma eletrônica embarcada e os pilotos tinham que ser virar literalmente no braço, estão entre as melhores coisas já produzidas nesse campo, de um nível comparável ao do sensacional filme Rush, feito a respeito da rivalidade entre Niki Lauda e James Hunt na disputa pela temporada de 1976.
Seguindo nessa mesma comparação, aparece a primeira derrapada de Senna: enquanto Rush conta com diálogos de primeira e um par de protagonistas desempenhando seus papéis em nível alto, com nuances de forma a demarcar as contradições e fraquezas dos corredores — palmas nesse aspecto para Chris Hemsworth (Hunt) e Daniel Brühl (Lauda) –, a série da Netflix sofre para pegar no tranco com os atores. O esforçado Gabriel Leone até larga na frente na caracterização física de Senna, que é muito convincente, mas come poeira no esforço dramático. Nos piores momentos, lamentavelmente, ele é do nível de Ricardo Macchi como o cigano Igor da novela Explode Coração. Mais constrangedora ainda é a caracterização para lá de caricata do narrador Galvão Bueno, que parece mais adequada a um quadro de humor do antigo Casseta e Planeta Urgente. Irmã do piloto e grande responsável por transformar o legado dele num grande trabalho de educação para o Brasil, Viviane Senna também merecia uma atriz e diálogos melhores na série.
Por falar na família Senna, o fato de a série ter sido autorizada por ela gera outras derrapadas na produção. Um dos grandes rivais de Senna e figura histórica do automobilismo nacional, Nelson Piquet é atirado para a caixa de brita no roteiro, embora tenha sido contemporâneo de Ayrton. Piquet, inclusive, conquistou o tricampeonato da categoria em 1987, um ano antes do primeiro título mundial de Senna. Assim, pela primeira vez na história, o Brasil tinha dois troféus seguidos, ganhos por pilotos diferentes, algo que dificilmente vai se repetir novamente. A ausência de Piquet na série talvez se explique por um possível veto da família Senna em resposta à língua ferina dele, que espalhou nos bastidores piadas de mal gosto a respeito da sexualidade de Ayrton. Mas é uma pena que esse capítulo importante, tanto pelo aspecto glorioso quanto pelo folclórico, tenha ficado de fora.
No campo amoroso, aliás, outra ausência (proposital?) já identificada foi a de Adriane Galisteu, última namorada do piloto. Segundo o noticiário a respeito, a família Senna a via como uma arrivista disposta a tudo para pegar carona na fama e fortuna de Senna, enquanto o verdadeiro amor da vida do piloto teria sido a apresentadora Xuxa. O roteiro parece dar razão a essa tese: Galisteu aparece em poucas cenas, enquanto Xuxa ganha um capítulo inteiro dedicado ao romance dela com o corredor.
Senna peca também pelo esforço de retratá-lo na grande maioria do tempo como um mocinho com o tanque cheio de escrúpulos em meio a adversários desleais e lutando o tempo inteiro contra a politicagem do esporte, rodeado por abutres na forma de jornalistas sensacionalistas. Senna tinha enormes qualidades, a começar pelo talento e o profissionalismo acima da média, mas era também conhecido por sua agressividade na competição e, nas relações com os cartolas da F1 e com a imprensa, não tinha nada de ingênuo, sempre soube jogar o jogo.
A série tem muitos méritos é verdade — e certamente vai fazer sucesso. No quesito diversão descompromissada, vale maratonar os seis capítulos. Mas a produção ficou para trás no esforço de jogar um pouco mais de sombra a essa personalidade tão complexa, vencedora e fascinante.