Membro notável dos Vingadores, não apenas por ser a única mulher na formação inicial, mas também por não possuir poderes sobre-humanos, a Viúva Negra confia exclusivamente em sua inteligência e habilidades extraordinárias.” A precisa descrição da heroína interpretada por Scarlett Johansson não saiu da sala de roteiristas ou de uma reunião dos marqueteiros da Marvel. O trecho faz parte do processo judicial que a atriz move contra a superpoderosa Disney, dona da Marvel e, por assim dizer, sua “patroa” desde 2010, quando ela vestiu o uniforme da espiã russa pela primeira vez. Ao listar as destrezas da personagem, os advogados de Scarlett ressaltam o talento da atriz e sua exaustiva preparação física para estrelar o esperado filme Viúva Negra. Se de um lado Scarlett cumpriu o contrato de se dedicar ao longa, o processo garante que a Disney não fez o mesmo: ao lançar o filme nos cinemas e na plataforma Disney+ ao mesmo tempo, em julho deste ano, o estúdio minou e muito os ganhos da atriz.
Tradicionalmente, a remuneração dos atores é feita através de um cachê combinado por obra. As grandes estrelas costumam negociar uma porcentagem da bilheteria e do uso de sua imagem em produtos de merchandising e licenciados. Com a pandemia, a empresa do Mickey Mouse adiou a estreia de diversos filmes até optar, neste ano, por lançar alguns deles de forma híbrida. Além dos cinemas, Viúva Negra poderia ser visto no conforto do sofá por uma taxa extra dos assinantes da Disney+. Na semana da estreia, o longa arrecadou 160 milhões de dólares em bilheterias no mundo e outros 60 milhões somente na Disney+. Os advogados da atriz alegam que a estratégia da Disney não só canibalizou os ganhos previstos em contrato de Scarlett com a bilheteria, como a imagem dela foi usada para atrair novos assinantes. Estima-se que a americana tenha perdido 50 milhões de dólares nesse imbróglio. Ao tentar renegociar o contrato, ela recebeu um grande não e um desagradável comunicado público da Disney, dizendo que Scarlett estava sendo “insensível” neste período difícil de pandemia. A falta de tato do estúdio irritou a classe, o que pode desencadear mais processos (Emma Stone estaria analisando ação parecida por Cruella). Rumores garantem que até o poderoso produtor da Marvel, Kevin Feige, entrou em atrito com o CEO da Disney, Bob Chapek, em defesa de Scarlett.
O posicionamento sem precedentes de Scarlett surpreendeu o meio cinematográfico e moveu mais uma peça do intrincado xadrez jogado entre Hollywood e o streaming. Se o mal-estar entre um e outro se resumia à disputa por espectadores e questões abstratas de cineastas, como Martin Scorsese e sua opinião de que a Netflix não é cinema, agora Scarlett dá um caráter palpável à celeuma: a falta de uma remuneração adequada vinda das plataformas. O que parece um assunto interno de estrelas e estúdios, no fundo é uma trincheira que pode remodelar a base do negócio — e, consequentemente, afetar o resultado final que chega até o espectador.
O efeito mais provável dessa guerra — que seria um tiro no pé para Scarlett — é o fim da era dos grandes astros hollywoodianos de salários astronômicos. O tipo pode entrar em extinção não pelo valor a mais a ser desembolsado para tê-lo, mas porque as plataformas hoje apostam na pluralidade de títulos e na descoberta de novas estrelas, já que não dependem de um filme de audiência estrondosa para lucrar. Em contrapartida, a abundância de conteúdo não garante ao assinante produções de qualidade — estas dependentes de uma boa equipe e, claro, bons atores.
Para se prevenir dos estragos de uma batalha como a da Viúva Negra e a Disney, a concorrente Warner Bros. optou por uma abordagem mais amistosa com os seus astros. Após o erro de anunciar o lançamento de seus filmes direto na HBO Max, sem consultar cineastas e atores, o estúdio se redimiu com pequenas concessões. Para aplacar os ânimos de Christopher Nolan e Denis Villeneuve, diretores das superproduções Tenet e Duna, respectivamente, a Warner diminuiu para 35 dias a janela entre a estreia no cinema e, depois, no streaming. Também renegociou acordos. Gal Gadot e a diretora Patty Jenkins receberam 10 milhões de dólares cada uma para cobrir eventuais prejuízos de bilheteria de Mulher-Maravilha 1984, lançado em 2020. Outros 200 milhões de dólares foram destinados para acertos do tipo.
O processo de Scarlett abriu também uma fresta para a necessidade de uma regulamentação a ser seguida pelo setor. Um acordo batizado de Tratado de Beijing tem se revelado o mais promissor. O documento, que foi assinado por trinta países, entre eles Japão, China e Suíça, estabelece normas para os direitos de propriedade intelectual criando distintas formas de cessão de imagem. Um exemplo: cada vez que uma produção for exibida no streaming, os artistas envolvidos ganharão uma porcentagem, tal como ocorre hoje com a música. “Nós, atores, só queremos direitos similares aos que já têm os roteiristas e diretores”, disse Javier Bardem, entusiasta da causa.
Livro – Scarlett Johansson: The Life and Films
A questão no Brasil ganha contornos particulares pelo sucesso das novelas. O acordo atual prevê que o ator ganhe uma porcentagem (ainda que pequena) toda vez que uma obra com ele for reexibida na TV. Não há, porém, um repasse vindo do streaming. Por aqui, as principais plataformas são braços dos canais Globo, Record e SBT. Quem lidera a busca por essa remuneração no país é a associação de gestão cultural Interartis, presidida pela atriz Gloria Pires, com Carolina Ferraz e Cassia Kiss como vice-presidentes. “Artistas que fizeram sucesso no passado têm seus trabalhos utilizados sem nenhuma remuneração”, lamenta Carolina, que moveu um processo trabalhista milionário contra a Globo após o fim de seu contrato, em 2017. Um dos impasses é a recusa das plataformas em divulgar números de audiência — dado necessário para um acordo. Na batalha que está apenas no início, os astros vão precisar de muitos superpoderes para enfrentar a mais poderosa indústria de entretenimento do mundo.
Publicado em VEJA de 18 de agosto de 2021, edição nº 2751
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