Steven Grant é a síntese do fracasso. Solteiro, ele vive sozinho em um apartamento abarrotado de livros sobre o Antigo Egito e implora por um emprego de guia no museu onde trabalha vendendo lembrancinhas. Sua realidade, porém, está longe da monotonia: com apagões de memória e sonhos perturbadores em que é perseguido por portar um escaravelho, Grant dorme acorrentado à cama com medo do que pode fazer adormecido. Tudo muda quando ele encontra um celular escondido na parede de casa e atende a ligação de uma mulher que insiste em chamá-lo de Marc. Perturbado com a espiral de bizarrices que toma sua vida, embarca em uma investigação e chega à conclusão de que os tais sonhos não são apenas produto de sua mente: Grant tem um distúrbio de identidade dissociativa e é também Marc Spector, mercenário que ofertou seu corpo como receptáculo dos poderes do deus egípcio Khonshu após ser salvo da morte por ele. O acordo faz dele Cavaleiro da Lua — herói justiceiro criado pela Marvel em 1975, que agora tem sua história dissecada na minissérie homônima do Disney+ protagonizada pelo versátil Oscar Isaac (confira a entrevista).
Cavaleiro da Lua: O Fundo do Poço
Dirigida pelo egípcio Mohamed Diab, primeiro cineasta do Oriente Médio a assumir o leme de uma produção da Marvel, a série é a nova aposta do estúdio no streaming — e sua mais sombria e original incursão na seara até agora. Com tempo de sobra para desenvolver personagens e longe da pressão de angariar bilheterias arrebatadoras, o que leva a uma abordagem mais conservadora nos cinemas, o Disney+ virou um celeiro de experimentação para narrativas que fogem, em menor ou maior grau, da fórmula bem-sucedida do Universo Cinematográfico Marvel, o MCU. São histórias que comungam de uma carga psicológica mais densa e tramas peculiares. “Há tantos super-heróis na Marvel que eles precisam ser reinventados de tempos em tempos. O Cavaleiro da Lua faz parte da renovação, e a saúde mental dele é um ponto importante”, disse Diab a VEJA.
Cavaleiro da Lua: Marvel-Verse
Exemplo inaugural da premissa, WandaVision transformou a jornada da Feiticeira Escarlate em uma ode às sitcoms, mas também em alegoria sombria dos efeitos do luto e da negação da perda na mente humana. Lançada em seguida, Loki usa o narcisismo do vilão para adentrar no terreno psicológico de uma figura que lida com o trauma do abandono e vive na corda bamba moral. Ambos ainda têm um pé no que poderia ser um filme da Marvel, seja pelos personagens conhecidos do cinema, seja pelas reviravoltas mirabolantes. Cavaleiro da Lua vai além na ousadia: apresenta um herói até então pouco conhecido e faz de sua história um estudo sobre autonomia e personalidade.
Paralelamente à angústia de Grant, que lida com a culpa de ter sangue nas mãos e de não saber quem é, a produção ainda mergulha em uma disputa filosófica: enquanto o deus Khonshu defende a vingança contra aqueles que cometeram crimes, Ammit, outra divindade egípcia cujo receptáculo na Terra é vivido com brilho por Ethan Hawke, entende que a maldade é intrínseca a alguns seres humanos, que devem ser eliminados. “Trama de super-herói virou um gênero em que é possível fazer de tudo, do horror ao drama”, diz o diretor. Cavaleiro da Lua é a prova indisputável disso.
Publicado em VEJA de 6 de abril de 2022, edição nº 2783
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