“Professor, um colunista do ‘Jornal do Commercio’ de Pernambuco se desculpou com uma leitora judia que se sentiu ofendida por ele ter usado o verbo ‘judiar’ em um comentário, pois este seria uma forma de antissemitismo. Se isso é verdade também o seria derivação como ‘judiação’? Obrigado.” (Ivan de Barros)
O colunista pernambucano citado por Ivan fez muito bem em se desculpar com a leitora. Faria melhor ainda, claro, se não tivesse empregado o verbo “judiar”, que, ao lado de “judiação” e “judiaria”, bani há muito tempo do meu vocabulário.
A carga antissemita de “judiar” na acepção de “maltratar, torturar, infligir sofrimentos” é clara. As dúvidas que a expressão suscita recaem apenas, como lembra Antenor Nascentes, sobre a relação exata que ela articula entre judeus e maus-tratos. Para alguns estudiosos seriam eles os autores (pelo menos imaginários) das maldades, “num tempo em que não havia atrocidade que não se atribuísse aos judeus para os perseguir e espoliar”. João Ribeiro foi um dos que apostaram em sentido diferente, que considero mais plausível: “judiar” teria nascido com o sentido de “maltratar um judeu”, logo expandido para “maltratar alguém como se maltrata um judeu”.
De uma forma ou de outra, bastou-me conhecer um dia o que havia de odioso por trás desse verbo, figurinha fácil no português popular, para decidir que nunca mais travaria relações com ele. O fato de grande parte dos falantes entrar nessa história de forma inocente, sem intenção de ofender ninguém, não basta para inocentar a própria palavra. Nada a ver com rendição à patrulha politicamente correta: trata-se de um sentido íntimo de decência. Se é verdade que tem havido exageros até ridículos na tentativa de criminalizar em bloco as expressões que se referem à cor negra, por exemplo, como se todo charuto fosse um símbolo fálico (leia mais aqui), não se pode negar a vileza onde ela é evidente.
Trata-se de uma decisão moral que cada falante, de posse das informações pertinentes, deve tomar sozinho. Optar por não usar “judiar” ou qualquer outra palavra é completamente diferente de apoiar a tese autoritária da censura aos dicionários, da qual já tratei aqui. Dicionários têm a obrigação de registrar até os verbetes mais carregados de preconceito, pois seu papel é retratar a língua que existe e não a que gostaríamos que existisse. Basta que apontem o que for pejorativo ou condenável, como faz o Houaiss no caso de “judiar”, observando que a palavra resulta de “antiga tradição antissemita de origem europeia”.
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