Sem querer entrar na seara do colunista Matheus Leitão, que já explorou alguns dos pontos mais relevantes da recente pesquisa do Ipec, há uma reflexão necessária sobre algo que será fundamental até 2024, tanto para o lulismo quanto para o bolsonarismo: o que fazer, em comunicação, diálogo e atos, com uma grande parcela da população propensa a escolher outro caminho político-partidário e ideológico que não o de Lula (ou seu/sua sucessor-a)?
Esqueça, por aqui, devaneios em torno da terceira via. Muitos de seus defensores se animaram ao ver na pesquisa que 57% desejam uma nova liderança política para fugir da polarização Lula-Bolsonaro. Num país de extrema-direita fortalecida e numa esquerda de linhagem lulista consistente e refortalecida, falta muito a avançar nesse terreno, a começar por uma liderança com escala e estrutura para conquistar eleitores.
Esse mesmo grupo também ignora que nessa faixa dos 57% há pessoas que veem elementos positivos tanto no governo Lula quanto no governo Bolsonaro – portanto, não pode ser considerado exatamente um núcleo duro pró-terceira via. Desejante, sim; partidário fiel de uma terceira via, (ainda) não.
Mas o problema vai muito além disso. E se expressa em alguns dos números do Ipec.
Primeiro, os 44% do brasileiros que acreditam corrermos o risco de virarmos um país comunista.
Segundo, o coração do lulismo hoje abrange basicamente a mesma faixa daqueles que consideram como ótimo ou bom os seus quase 80 primeiros dias de governo – beira ali a faixa de 40%.
Terceiro, o coração bolsonarista, embora bem mais fraco (ou menor) do que o do lulismo, é barulhento. Bate forte. E tem potencial explosivo para o governo e seu futuro. (Marcia Cavallari, do Ipec, calculou com o jornalista José Roberto de Toledo, um craque em pesquisas, algo em torno de 21%.)
Cruzando todos esses dados, será um erro se o presidente e o PT repetirem o mesmo equívoco que vêm cometendo: tratar o atual mandato de Lula como uma reprise de seus mandatos anteriores, com leves nuances de aperfeiçoamento. (E o foco da coluna aqui é em Lula porque é dele a vantagem de quem está sentado na principal cadeira do poder e tem à mão a caneta de escolhas e decisões de maior impacto sobre o Brasil inteiro.)
A reciclagem ou atualização de programas que lhe garantiram recorde de popularidade no segundo mandato, e o tipo de retórica e estratégia de comunicação constatadas até aqui são dois exemplos do que fala alto ao coração do poder lulo-petista: dirigir-se ao “povo de Lula”, como definiu muitos anos atrás o saudoso cientista político Candido Mendes.
É evidente que Lula tem pressa em reciclar o que deu certo no passado e se apoiar nas âncoras que lhe sustentam são os caminhos mais seguros na hora do aperto. São muitas as dificuldades de início do mandato e o tamanho dos problemas herdados (especialmente naqueles onde os retrocessos exigem ou revogaços ou reformas completas e complexas que tomam tempo e energia).
Mas muitas dessas dificuldades também nascem ou se aprofundam justamente da visão em curso.
Por exemplo, parece delírio, mas o governo e a centro-esquerda não podem tratar como tal os riscos de comunismo apontados por 44% na pesquisa do Ipec. Se de fato só um delirante acharia mesmo que o Brasil corre o risco de se deparar nos próximos anos com uma versão nacional dos bolcheviques russos ou uma ópera venezuelana, na linha neo-Maduro, adotar uma ditadura de partido único e estatizar os meios de produção.
Mas nessa estou com Joel Pinheiro da Fonseca: o comunismo que essas pessoas enxergam é de outra natureza. Pode ter a ver com possíveis desastres econômicos da Venezuela ou mesmo da Argentina – como sugere Fonseca – ou diz respeito, o que é mais complexo de resolver, com o fato de que atrelam sua desconfiança com Lula à dificuldade congênita e estrutural que elas têm diante de valores atribuídos à esquerda.
É aí que mora o perigo e onde Lula ainda não parece ter dado a prioridade devida.
Exceto alguns poucos especialistas, pesquisadores, think tanks e organizações, há um equívoco corrente de só enxergarmos a polarização político-partidária. Essa existe, mas é um problema menor diante de uma outra polarização muito mais relevante e muito mais difícil de resolver: a chamada polarização afetiva. Sua inspiração vem dos EUA do trumpismo.
A tradução para o português torna mais complexo seu entendimento no Brasil, mas para simplificar ela existe quando as divergências políticas têm origem não no desacordo sobre determinada candidatura, partido, questão ou preferência, e sim pela identidade de grupos – e o sentimento que cada grupo polarizado tem em relação ao outro.
Em outras palavras, é uma polarização baseada não no que as pessoas pensam, mas em como elas se veem e se sentem diante de opositores. É quando os polos se veem como inimigos: como não toleram o adversário, o enxergam como ameaça. Da ameaça nasce o medo, do medo nasce a violência política. Da violência política nascem alternativas autoritárias.
Esses grupos ou identidades polarizam por valores, como a aceitação de pessoas LGTQIA+, a políticas antirracistas e inclusivas, de um lado; ou o discurso anticorrupção, de outro lado. Mas, o mais grave, polarizam porque veem defensores dos valores que lhes são opostos como inimigos.
Até aqui essa polarização tem sido assimétrica, com lados não comparáveis, porque existe um corte: o da legalidade. Basta citar um exemplo: um crime como o de 8 de janeiro.
Mas a pesquisa do Ipec reforça a constatação de que Lula e boa parte dos integrantes do governo precisam dedicar mais atenção a quem não está no coração do lulismo. Isso vale para a retórica do terceiro mandato, que nasceu no manto do diálogo e da reconstrução.
E vale também para políticas públicas – se o governo acerta no eixo das reformas inclusivas e anti-desigualdades econômicas, de raça e de gênero, erra por exemplo ao ignorar as populações evangélicas, habitualmente objeto de atenção em ciclos eleitorais, e não mais do que isso.
Note o plural de “evangélicos” destacados acima, enquanto a esquerda (e o Brasil católico como um todo) enxerga o segmento como algo homogêneo e concentrado nas igrejas e nos pastores. Como aprendi com a cientista política Ana Carolina Evangelista, é um voto mais heterogêneo do que informa o senso comum, e igualmente carente de políticas públicas que têm a ver, sim, com a pauta de valores, mas também de direitos, de mulheres e de outras agendas.
Outro erro comum é confundir eleitores não-lulistas com bolsonaristas. Confundir anti-lulistas com extremistas, adeptos da violência política, das fake news e dos discursos de ódio. Confundir eleitores de Bolsonaro no segundo turno com esses mesmos extremistas. São grupos “misturáveis”, mas não necessariamente.
E assim o governo Lula parece não saber ainda o que fazer nem com o extremismo, nem com a parcela da população que, no mínimo, tem o pé atrás com o seu governo.