Celso Amorim, assessor para assuntos internacionais do Planalto, soprou a Lula a ideia de realizar novas eleições — com a mediação de órgãos internacionais e a participação de observadores externos — na Venezuela. Acha que isso pode ajudar a resolver a crise no país.
É para rir.
A eleição de há quase três semanas teve a mediação de órgãos internacionais e a participação de observadores externos — que, depois de fugirem do país, gritaram “fraude” em alto e bom som. Amorim quer fazer de novo a mesma coisa esperando resultado diferente?
O Brasil, evidentemente, não deve romper relações com a Venezuela: somos um dos poucos países em condições de negociar uma saída pacífica para a crise e trata-se de um país vizinho do qual provém um enorme fluxo de refugiados. Mas o Brasil tampouco pode dar a impressão de que aceitará manter Maduro no poder na base do tapetão — e é exatamente isso o que está fazendo.
O relacionamento de Lula com o chavismo tem mais de vinte anos, inclui remessa de dinheiro do petrolão, juras de amor eterno e relativização da democracia. O PT reconheceu a vitória de Maduro, Lula deu entrevista dizendo nada ver de anormal na Venezuela e deu de barato a vitória do fraudador. O Brasil exige o aparecimento dos boletins de urna — mas não estipula prazo e não pressiona, na prática dando a Maduro tempo para falsificá-los.
“O relacionamento de Lula com o chavismo tem mais de vinte anos e inclui remessa de dinheiro do petrolão”
Ao aceitar a sugestão de Amorim, Lula estará dizendo à comunidade internacional: “Como o Maduro não teve competência para fraudar a eleição de forma convincente, que tal darmos a ele mais uma chance? Quem sabe dessa vez ele faz o serviço direito e consegue convencer vocês?”. Será mais uma etapa na trajetória de desmoralização que inclui a defesa da invasão da Ucrânia, a solidariedade com o Hamas e a já conhecida leniência com ditaduras latino-americanas.
O amor da esquerda brasileira pela democracia é intransigente quando existe o risco de Bolsonaro derrotar Lula e entorpecido quando o ditador é antiamericano. Na direita, esse mesmo amor é intransigente quando a ditadura é de esquerda, como na Venezuela, ou entorpecido quando o ditador é alguém como Jair Bolsonaro. Poder-se-ia dizer que “democracia é bom quando é bom para nós” (e não é bom para ninguém diante do amor por Vladimir Putin, de direita e antiamericano).
O amor do brasileiro pela democracia não flutua somente nos polos, por sinal. Nesta semana morreu Antônio Delfim Netto, principal nome civil da ditadura, signatário do AI-5 (que queria mais duro e do qual nunca se arrependeu), responsável por uma política econômica que concentrou renda e arrasou o país, apelidado de “Monsieur Dix pour Cent” e citado em inúmeros escândalos de corrupção da época.
Um marciano que leia os jornais sairá com a impressão de que Delfim, um homem “complexo” que cometeu alguns erros, foi um economista genial e um grande brasileiro, de espírito democrático. É isso que disseram inúmeros (supostos) democratas e economistas liberais. E vêm dizendo isso há décadas.
No Brasil, o amor pela democracia é mesmo “complexo”.
Publicado em VEJA de 16 de agosto de 2024, edição nº 2906