Reportagem de VEJA de outubro de 1992 retirava seu título das palavras finais do personagem Kurtz, de “Coração das Trevas”, obra-prima de Joseph Conrad, que inspirou o filme “Apocalypse Now”, com Marlon Brando no papel: “O horror, o horror”. Tratava-se então, não da barbárie colonial ou da carnificina no Vietnã, mas do massacre do Carandiru, que, nesta semana, o desembargador Ivan Sartori contestou, alegando que os 74 policiais acusados pela selvageria agiram em legítima defesa. O que VEJA de 14 de outubro de 1992 relatou, contudo, foi um ataque brutal: em meia hora de terror, policiais armados com escopetas, metralhadoras, revólveres e facas acuaram os detentos e deixaram um rastro de 111 mortes, com abundantes sinais de execução, corroborados pelo testemunho de sobreviventes. Na mesma edição, VEJA tratava da tentativa do então governador, Luiz Antonio Fleury Filho, de acobertar o massacre às vésperas da eleição daquele ano e abordava ainda as péssimas condições das penitenciárias Brasil afora.
Leia trecho da reportagem “O horror, o horror” (e clique aqui para ler a íntegra):
Eram 4 horas da tarde. Começam os trinta minutos decisivos, a meia hora de horror. Há pouca luz e muita fumaça no corredor de pouco mais de 2 metros de largura. A PM tem lanternas. Os presos correm entre as celas. Xingam os policiais. “Aqui é o choque”, anunciam os soldados no 2º pavimento. ‘Chegou a morte”, gritam, raivosos e ameaçadores. São alvejados por sacos de urina e fezes. Os presos brandem estiletes sujos de sangue. “Vocês vão morrer de Aids”, desafiam os detentos. Uma saraivada de tiros ecoa pelo prédio. “O japonês entrou atirando para o alto e depois saiu metralhando dentro das celas”, conta José Nonato da Silva, 29 anos, condenado a seis por assalto a mão armada. “Vi ele matar o ‘Japão’, o ‘Kico’, o ‘Nenê’, o Cláudio, o Paulo e o ‘Bahia’ “, completa Jair Osério, 28 anos, quinze de pena por latrocínio. O “japonês” é o coronel Nakaharada. Ele tem nas mãos uma metralhadora Beretta 9 milímetros, uma maravilha bélica capaz de cuspir dez balas por segundo. Entre sargentos e oficiais, há 43 pessoas na Detenção autorizadas a portar Berettas. Entram também 43 que levam facas na cintura. Cabos e soldados portam revólveres calibre 38 (tambor de seis tiros) e escopetas calibre 12, arma que pode abrir um rombo de 15 centímetros de diâmetro no peito de um preso.
Pelo que ouvem no andar de baixo, os presos do 3º pavimento preparam-se para a rendição. “Como a polícia mandava bala lá embaixo, tiramos a roupa para provar que não atacaríamos”, recorda Antônio Pereira da Silva, da cela 9303-1, que tem três ocupantes. “Eu fiquei atrás da porta, o ‘Zebu’ estava atrás da privada e o Zé Carlos ficou na cama.” Os policiais dão ordem para sair e deitar no chão, mas um deles manda deter Zé Carlos. “Esse aí. não”. ordena aos colegas. “Encosta ele na parede”, determina. E atira. “Virei para ver o que aconteceu”, narra Antônio. O PM enfiou a faca no meu pé e tentou me acertar o olho. Me defendi com a mão. Um corte profundo na mão direita avaliza seu depoimento. Na cela 9307-E. oito presos espremiam-se no banheiro. Um permanece sentado na cama. Entra um policial atirando. “Estamos desarmados”, grita Díonísio Paíva Filho, o “Didi”, 29 anos, cinco anos e quatro meses de condenação por assalto a mão armada. De nada adianta. 0 policial dispara contra o preso que está na cama e sai.
Passam-se alguns minutos. Aparecem na mesma cela outros três soldados, também atirando. No banheiro, apontam para quatro detentos que estão no chão, encolhidos. Dois dos detentos são os cariocas João Rodrigues Vasquez e Antonio Márcio dos Santos Fraga. Foram presos em Tatuí, no interior paulista, por receptação de carro roubado, e esperam desde o mês passado a remoção para o Rio de Janeiro. “O guarda chamou um carioca e encostou o revólver na cabeça dele”, relata Dioníso. “Perguntou-se ele estava assustado, e ele respondeu pedindo pelo amor de Deus para não morrer.” O PM atira três vezes. Dionísio sobreviveu. “Eu fiquei embaixo do ‘Zé’ e do Antônio”, ele lembra. No meio da fuzilaria, Dionísio ouve a voz de um dos amigos. “Didi, eu estou morrendo”, diz um dos homens sob o qual se esconde. “Me socorre, me ajuda”, implora. Didi responde num sussurro. “Não posso. Se eu levantar os homens me matam”. Não há mais resistência na Casa de Detenção. Só fuzilamentos.
“Quer morrer de faca ou de revólver”, pergunta um policial apontando a arma para a cabeça de um detento. “Ele não respondeu e morreu de tiro”, lembra Edrialdo Pereira, 25 anos, da cela 9343-1, condenado a três anos e quatro meses por tentativa de roubo. “Viva o choque”, gritam os soldados diante da cela 9339-E. Enfiam o cano da metralhadora pela abertura da porta e massacram oito prisioneiros. “Quase morri de medo”, diz Reinaldo Aparecido Rodrigues, 35 anos, que assistiu à execução. “Eu e outro preso ficamos embaixo dos oito que eles mataram na nossa cela”, narra Davi Ferreira de Lima, 26 anos, ocupante da 9402-E. Ambos saem feridos. “As balas atravessaram os corpos deles e acertaram na gente”. Um andar acima. Luís Carlos dos Santos Silva, 24 anos, refugia-se na cela 9512-E junto com doze companheiros. Leva cinco tiros, pelas costas. “Quando apareceram, deitamos de bruços, bem no cantinho da ceia”, ele recorda. ‘Vieram rajadas de metralhadora e mandaram levantar.” Só quatro sobrevivem para obedecer. Todos os presos são “Zé” para os PMs. “Vem aqui, ‘Zé’, chamam. “Grita Rota aí, ‘Z锑 ordenam. -Morre aí, ‘Zé’.” Morrem todos os doze ’26” da cela 9345-E, os onze da 9375-E, os cinco da 9385-E e os três da 9252-1, entre outras.
A varredura acaba quando a tropa alcança a última cela do 5º pavimento. Mas as sessões de sadismo ainda vão continuar. É o momento de levar os sobreviventes para o pátio. Para alcançar as escadas, os presos têm de passar por um corredor polonês, de cabeça baixa, entre chutes, coronhadas e ataques dos cães. “Tinha óleo no chão e eles mandavam a gente correr”, conta Milton Abraflão, 29 anos. “Se o cara caísse, morria.” As narrativas coincidem. “Deram uma facada no sujeito bem do meu lado’, diz Renato Barbosa, 20 anos. “Depois me mandaram carregar o cara junto com outro companheiro.” Ainda há execuções. “Passei por cima de gente morta e vi que eles levavam feridos para a sala de esportes”, recorda Jair Osório. A sala de esportes fica no 2º pavimento. Ela guarda aparelhos de alterofilismo, flâmulas e troféus das equipes esportivas dos detentos. “Eles foram fuzilados lá dentro”, denuncia Osório. No pátio, Osório vê atiçarem cães sobre presos reunidos na barbearia.
Leia trecho da reportagem “Cadáveres sob a urna” (e clique aqui para ler a íntegra):
O governador Luiz Antonio Fleury Filho tentou esconder dos eleitores de São Paulo os mortos da Casa de Detenção. No sábado às 10 horas, quando saiu de casa para votar, minimizou o episódio e apoiou a ação da polícia. No decorrer da semana, emparedado pela repercussão, mudou de comportamento. Depois de demitir todo o comando da PM e defenestrar o secretário de Segurança Pública, Pedro Franco de Campos, que além de auxiliar é seu amigo, o governador admitiu que os policiais cometeram um massacre. Prometeu encontrar os culpados. E anunciou uma nova era na polícia, “mais humana”. Fleury se disse abatido com a violência, mas sustentou o improvável: segundo seu depoimento, soube do crime pouco antes do fechamento das urnas – quase um dia depois da invasão.
Os fatos apontam na direção oposta. Às 15 horas de sexta-feira, quando a central de comunicações da PM chamou o rádio portátil Motorola de prefixo 701252, o secretário Pedro Franco atendeu e ouviu o recado enviado pelo coronel Ubiratan Guimarães, comandante da PM: “O coronel está na Detenção, onde os presos estão rebelados. Ele precisa falar com o senhor”. Em cinco minutos, Campos já conversava com Guimarães pelo rádio. “A situação é insustentável”, avisou-lhe o coronel. “Vai ser preciso invadir.”
Leia trecho da reportagem “Vida no meio do caos” (e clique aqui para ler a íntegra):
O episódio da Casa de Detenção, em São Paulo, pertence a uma categoria de tragédias cotidianas que só chamam a atenção em circunstâncias especiais. Ocorrem mortes diariamente nas prisões do país. Algumas vezes há matanças com cinco, sete vítimas. Ninguém nota. Se tivessem morrido doze, treze presos na Casa de Detenção do Carandiru, é provável que tudo passasse mais ou menos despercebido. Unia revolta de detentos? Ora, sempre morrem alguns, é natural. A ocorrência de uma semana atrás chocou a opinião publica não porque seres humanos foram assassinados com perversidade. Chocou pelo número assustador das vítimas, pelo peso de mais de uma centena de cadáveres, pelo espetáculo indecente de uma multidão de corpos enfileirados dentro de caixões toscos, prontos para o sepulta-mento. Cadeia é assim mesmo: só desperta a sensibilidade dos cidadãos honestos quando a animalidade que nela existe ganha uma dimensão formidável.
Falta tudo nas cadeias brasileiras, a começar por vagas. As delegacias de polícia e as 210 prisões do país têm capacidade para abrigar 51000 presos, mas nelas amontoam-se 124 000, num excesso de 73 000 pessoas. Quase metade da massa carcerária, 59 000 detentos, está alojada nos xadrezes dos distritos policiais, que foram feitos para recebê-los por pouco tempo, enquanto aguardam transferência para um presídio. A situação é pior ainda para os 65 000 detentos que cumprem pena nas prisões. Ali, eles convivem com quadrilhas, com o tráfico e o consumo de droga e com a corrupção de agentes penitenciários.
A superlotação é a face visível da situação escabrosa. No Recife, a penitenciária Anibal Bruno tem capacidade para 470 detentos, mas abriga 1.000. Há celas com até cinqüenta presos onde deveriam ficar apenas dez. Em Porto Alegre, o Presídio Central tem 700 vagas, mas vivem ali 1700 presos. Numa antiga cela para dez pessoas, fincou-se um segundo andar para dar lugar a oito cubículos para dezesseis presos. “Às vezes choro na cela. Fico pensando quanto tempo estou perdendo”, diz o presidiário Luis Femando Amaral, detido há oito meses à espera de julgamento por homicídio. “Isso aqui é um lugar de horror.” A superlotação não é só uma crueldade. Também é um incentivo à ma-tança. Em 1985, em Belo Horizonte, 300 presos dividiam onze celas nas quais só havia espaço para quarenta e resolveram o problema com um ritual de eliminação. Com um sorteio, escolhiam um companheiro para morrer. De um saco plástico, retirava-se o nome da vítima. À noite, quando o escolhido estivesse dormindo, um colega saltava de um pequeno muro próximo ao banheiro da cela sobre seu estômago. Depois, enforcavam-no com uma camisa cheia de nós – a fatal “teresa”, segundo a gíria das penitenciárias. Dias depois, morria outro e mais outro. Assim, quinze presos foram assassinados na loteria macabra.