Lá se iam 11 anos do golpe militar de 1964, e a abertura política com que o então presidente Ernesto Geisel acenava era ainda uma incógnita. Nos porões, a repressão continuava produzindo vítimas, em particular, naquele ano de 1975, militantes do Partido Comunista Brasileiro. Em maio, poucos dias após o desaparecimento do sapateiro Itair José Veloso, alguns meses antes da morte do jornalista Vladimir Herzog, a Unicamp sediava um seminário que entraria para a história como um marco do lento e difícil processo de reorganização acadêmica do país.
Ousada iniciativa de jovens professores da universidade, tendo à frente o futuro diplomata Paulo Sérgio Pinheiro, a Conferência sobre História e Ciências Sociais encerrou anos de isolamento e trouxe ao Brasil pesquisadores de renome mundial, como Eric Hobsbawm, Juan Linz, Arno Meyer, Kenneth Ericson, Rudolph Bell, Guillermo O’Donnell, entre outros. VEJA de 4 de junho daquele ano dedicou longa reportagem de capa à conferência e também à própria Unicamp, cujos 50 anos de fundação são agora celebrados. “Depois de onze anos de silêncio, essa conferência foi a primeira tentativa significativa para recuperar o tempo perdido pelas universidades brasileiras”, dizia o texto.
“Preste atenção em Campinas” era o título da matéria sobre o seminário, definido como: “uma importação por prazo limitado de professores afastados entre si por especialidades, enfoques e até idiossincrasias políticas, mas ligados por uma especialização comum – ensinar as pessoas a pensar de maneira nova”. “E isso, no Brasil, não é certamente um produto supérfluo.” A reportagem anotava que o encontro “mostrou a constrangedora distância que separa a cultura contemporânea e as estantes brasileiras. As obras mais importantes da maior parte dos expositores estrangeiros não têm edição em português”.
Em Brasília, os parlamentares mantinham “olímpica indiferença” pelo simpósio. “Só lerei as conferências como entretenimento, pois jamais modificarão meus pontos de vista. Sei tudo sobre política no Brasil e aprendi isso em quarenta anos de prática”, gabava-se o líder do governo na Câmara, deputado José Bonifácio Lafayette de Andrada. VEJA observava: “É possível que ele saiba realmente tudo o que precisa para as escaramuças de plenário e palanque. Nem estava entre os objetivos do seminário mexer nas ideias de José Bonifácio ou de qualquer político – que, aliás, sequer foram convidados, contrariando um hábito implantado no país pela Universidade Candido Mendes. Por isso, a resistência do deputado talvez revele a profunda desconfiança que os sacerdotes da política oficial adotaram, de 1964, em relação ao trabalho dos cientistas sociais.”
A desconfiança era recíproca, por razões bem diferentes: a perseguição política ainda assombrava os meios acadêmicos, um dos primeiros alvos do regime militar.
Hobsbwam, por exemplo, deixou a plateia de cabelo em pé ao apresentar-se candidamente como “um historiador marxista”. Alertado pelos colegas brasileiras, passou ele próprio a aconselhar os demais debatedores a evitar qualquer referência à realidade brasileira que soasse como provocação. “Tudo isso levou Arno Meyer a conclusões pessoais sobre a distensão: ‘É como na França napoleônica – a inteligentsia pode fazer o que quiser desde que não saia dos salões’. E não estava sendo precipitado, pois num breve discurso de encerramento, sexta-feira, o professor José Honório Rodrigues saudaria essa conferência, realizada com tantas minúcias para não transbordar dos limites permitidos: ‘Isso já é a distensão’. Pode ter sido. Mas um país onde a ciência social passou a ser um exercício de esconder ideias em linguagem cifrada ou relegá-las às línguas estrangeiras, sem dúvida, tem muito o que distender.”
Leia também na mesma edição de VEJA reportagem sobre a efervescência cultural e o “pendor para voos extra-campus” da Unicamp, que já então se firmava como centro de excelência acadêmica, e o ensaio “Evocações de Campinas, irreal, única”, sobre a história, os caprichos e os orgulhos da cidade.