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Reinaldo Azevedo

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Resposta a uma professora de história que achou que poderia me esculhambar. Ou: O que liga a anistia a Marighella aos criminosos do mensalão

Carlos Marighella foi anistiado. Escrevi um post lembrando a sua obra. Entre outras delicadezas, em seu “Minimanual do Guerrilheiro Urbano”, ele defendia que seus comandados e outros tantos que tomassem aquele texto como guia recorressem a emboscadas, como a que o matou. Ele legitimava a prática de seus algozes — apenas não estavam do mesmo […]

Por Reinaldo Azevedo Atualizado em 31 jul 2020, 07h26 - Publicado em 12 nov 2012, 07h15

Carlos Marighella foi anistiado. Escrevi um post lembrando a sua obra. Entre outras delicadezas, em seu “Minimanual do Guerrilheiro Urbano”, ele defendia que seus comandados e outros tantos que tomassem aquele texto como guia recorressem a emboscadas, como a que o matou. Ele legitimava a prática de seus algozes — apenas não estavam do mesmo lado. Defendia ações abertamente terroristas e não ficou só na teoria. Praticou o que escreveu. Muita gente morreu por decisão sua e de seu grupo. No texto em questão, apenas lembrei parte pequena do que fez e do que escreveu.

Recebi uma mensagem irada de uma senhora que se diz professora de história. Dados alguns jargões e cacoetes, acreditei que falasse a verdade. Fui ao Google e a encontrei nas redes sociais “debatendo” isso e aquilo… Coitados dos nossos jovens! Quantos ficarão na ignorância! Não publico o nome da bruta porque não vou lhe dar cartaz nem satisfazer o ego: “Viu só? Aquele Reinaldo lá publicou o que escrevi…”. Parte da sua invectiva contra mim, no entanto, ajuda a pensar. Leiam que mimo.

“Por que você faz tanta questão de ser desagradável e, como você mesmo diz, escrever o que mais ninguém escreve? Pode ser que ninguém mais escreve porque é um absurdo. Você já parou para pensar que não é Deus e que pode estar errado? (…)  Marighella foi um verdadeiro herói nacional e sabia que não enfrentava os canhões com flores. Essa sua obsessão de ser do contra é patética (…)”

E ela segue me ofendendo — e ofendendo também a língua e o subjuntivo: “Pode ser que ninguém mais escrevA…”, senhora professora!!! A continuar assim, mestra, “nós num pega mais os peixe…” — para escrever em haddadês… Vamos ver.

Se explicitar a realidade documental é ser “desagradável”, então sou. Lamento informar, senhora, que milhares de leitores se interessam pelos fatos. E meu post sobre Marighella traz apenas os fatos. Não fui eu que atribuí a ele a defesa do terrorismo, como a senhora afirma em outro trecho de sua mensagem. Ele efetivamente FEZ a apologia de tal prática, sem meias palavras.

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Ora, minha senhora, eu, com efeito, ignoro “não ser Deus” porque, para ter tal consciência ativa, seria preciso que, em algum momento da trajetória, tivesse me imaginado… Deus, constatando, desolado, que a minha impressão era falsa. Como me sei demasiadamente humano e falível, então não poderia constatar NÃO SER o que IMPOSSÍVEL SERIA ainda que, louco, ambicionasse SÊ-LO. Leia de novo, mestra. Leia de novo…

A cada linha que escrevo, é evidente, penso que posso estar errado. É próprio de quem labuta com as palavras e com as ideias. Escreve-se a favor de determinados pontos de vista e contra outros tantos. Um texto só se torna relevante se é de combate, se incorpora a polêmica para fazer uma escolha — e é de sua natureza ser espreitado pelo risco do erro. Assim, respondendo à sua indagação, afirmo: sim, conto com a possibilidade de estar errado todos os dias, várias vezes por dia, a cada post. Mas não me acovardo, não. Sempre faço uma escolha: os fatos.

Quanto às flores e aos canhões, acho que a metáfora já era brega quando empregada por Geraldo Vandré nos anos 60 do século passado, não é mesmo? Mas a senhora tem razão: se há coisa que Marighella não fazia era recorrer a flores. Ele preferia bala e explosivos…

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É com essa seriedade que a senhora encara seus alunos? Não divulgo seu nome também para poupá-la de si mesma e não expor a nu sua ignorância diante dos jovens. Cedo ou tarde, eles teriam acesso a essa resposta, e eu tenho enorme carinho por professores porque penso nos que tive; lembro-me que eu mesmo fui um deles.

Eis o ponto
Mas eu entendo a reação da Dona Fulana professora de história. É razoável que ela estranhe o meu texto no cotejo com o que eventualmente leu na dita “grande imprensa”, nos portais, sites etc. Lembrei a obra real de Marighella não porque pretenda ser diferente dos outros; torno-me diferente dos outros porque lembrei a obra real de Marighella. A senhora entendeu a sutileza da coisa? De novo, leia de novo… NOTA: não sou o único a fazê-lo; sou dos poucos.

Noto, caros leitores, que seria perfeitamente possível glorificar — já que querem assim — a vida de Marighella sem omitir a sua obra. Ora, que se explicitem suas escolhas, suas ações, sua teoria revolucionária (expressa no minimanual e em outros livros). E que se diga em seguida que aquele, afinal, era mesmo um caminho virtuoso. Do ponto de vista intelectual, considero menos digno omitir seus crimes do que absolvê-lo, entenderam? Que se diga com todas as letras: “Matou, sim; explodiu bombas, sim; defendeu o terrorismo, sim, mas era uma saída legítima, revolucionária, humanista…”. Sei lá eu quantas barbaridades elogiosas se poderiam dizer. Eu continuaria a achar o pensamento abjeto, mas menos covarde. Divergir sobre as escolhas — especialmente sobre as escolhas éticas — é parte do jogo. Escoimar uma biografia de aspectos incômodos para relevar o Varão de Plutarco é um procedimento desonesto e covarde.

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O Brasil tem outros heróis ou quase-heróis incômodos. Pegue-se o caso de Getúlio Vargas, por exemplo. Foi um tirano. Sua polícia torturou, aleijou e matou durante o Estado Novo. Não obstante, setores da esquerda e nacionalistas de várias tonalidades fizeram dele um herói, como se não tivesse havido três Getúlios: o da Revolução de 30, o do Estado Novo e o suicida cheio de amanhãs supostamente gloriosos. O tirano teve sua obra esmaecida pelo fervor do falso profeta, e as esquerdas (que ele tratou no porrete) e o nacional-estatismo o transformaram no nosso único “founding father”. Nada se compara, no entanto, à mistificação que está em curso, a que deu início, em muitos casos, a Comissão da Anistia e que terá sequência com a dita Comissão da Verdade.

Ora, cantar as glórias de Marighella significa declarar que não existe pecado no terreno das esquerdas. O mais relevante, meus caros, é que isso tem pouca ou nenhuma importância no que respeita ao passado. O terrorista que liderou a ALN está morto e enterrado, a exemplo de suas vítimas, tornadas anônimas — a Comissão da Verdade não quer saber que nome tinham, quais eram seus laços familiares, que afetos se romperam com a sua morte. Eram meros coadjuvantes da “narrativa” estrelada por aquele cavaleiro sem mácula.

As omissões sobre a vida e a obra de Marighella servem ao presente, aos supostos “resistentes” de hoje. Ora, naquele caso, era a suposta grandeza da causa que dava ao terrorista licença para matar e para recomendar que se matasse — de forma aleatória se necessário — como método. Fiquem atentos, nestes dias, às desculpas dos chefes criminosos do mensalão. Também eles falam em nome de uma “causa”; também eles dizem estar em luta contra inimigos terríveis e poderosos; também eles afirmam — como quer Janio de Freitas… — que se trata de um confronto entre os reacionários que mataram Getúlio e lideraram o golpe de 1964 e as forças populares…

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Como quem tem apreço pela história, senhora professora — e, definitivamente, não parece ser o seu caso, embora, Deus Meu!, tenha salas de aula à sua disposição —, não deixo que a farsa prospere sem emitir a minha opinião. Como quem tem apreço pelo futuro, não deixo que vigaristas — não sem protesto ao menos — nos imponham, em nome de sua moral, o que jamais lhes imporíamos em nome da nossa: a justificação do crime.

Aqui os tiranos não se criam.

Texto publicado originalmente às 2h21
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