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Reinaldo Azevedo

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Blog do jornalista Reinaldo Azevedo: política, governo, PT, imprensa e cultura

Dois Córregos

A valente Dois Córregos, sempre cantada aqui em prosa e prosa — pronuncia-se “Doiscoirrrgo” — foi parar na capa da revista da Folha neste domingo. Ganhou o epíteto de terra da poesia. A cidade fica a 288 km de São Paulo e tem 24.683 habitantes. Lá nasci e passei boa parte da infância e adolescência, […]

Por Reinaldo Azevedo Atualizado em 6 jun 2024, 07h26 - Publicado em 15 abr 2007, 06h54
A valente Dois Córregos, sempre cantada aqui em prosa e prosa — pronuncia-se “Doiscoirrrgo” — foi parar na capa da revista da Folha neste domingo. Ganhou o epíteto de terra da poesia. A cidade fica a 288 km de São Paulo e tem 24.683 habitantes. Lá nasci e passei boa parte da infância e adolescência, sobretudo férias escolares, “num bangüê dum meu avô”, como diria o grandíssimo Jorge de Lima, embora eu não tenha sido tentado por nenhuma “negra Fulô”. Não era negra…

Lá estão ainda muitos dos meus afetos, a começar de meu pai, que também é onde tudo termina, já sob “a laje fria”, no ponto mais alto da cidade. Do cemitério se pode enxergar muito longe. Vou a Dois Córregos com freqüência para celebrar meus vivos e rezar pelos meus mortos. Lavo o túmulo, troco as flores, faço minhas orações, choro às vezes. As coisas se recompõem, ficam no seu lugar. Ao fim, herético, afro-Reinaldão, místico, catolicismo esquentado pelo sol dos trópicos, deixo-lhe um cigarro ao pé da campa. E vou embora.

Todo mundo corrige a sua infância com delicadezas perdidas, mesmo as inexistentes. As minhas invenções estão lá: ainda luz de lamparina, música de viola (Tião Carreiro e Pardinho, cousa fina…), destala de fumo (tirar o talo da folha de tabaco para fazer fumo de corda), revirar o café no terreiro debaixo de um sol escaldante: do chão subia um cheiro quente e adocicado. Caso a gente respirasse muito fundo, sobrevinha uma espécie de vertigem. Colher o fruto no pé escalavrava de farpas as mãos do garoto desavisado. À noite, no breu, percorria os pequenos nódulos nos dedos, nas palmas, quase orgulhoso da façanha.

A Folha despachou pra lá o repórter Roberto de Oliveira e a fotografa Maria do Carmo. Segue um trecho da reportagem. Retorno depois:

Cidadezinha qualquer”, o poema acima, se encaixa perfeitamente no retrato falado de Dois Córregos, município paulista de menos de 25 mil habitantes, e de outros tantos do mesmo quilate.

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Com a igreja matriz em posição estratégica, avistada dos rincões, as badaladas pautam, sem pressa, a rotina dos moradores. A praça, arborizada e limpa, tem coreto. Ao redor, crianças, jovens, idosos e bichos vêem a vida passar. Dá uma sensação de paz, mas também dá uma preguiiiça danada.

Dois Córregos, no entanto, guarda uma peculiaridade que poderia surpreender o autor do poema, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Nas escolas, em casa, bares, cadeia e capelas, sempre há alguém cometendo versos -e sem a mínima pretensão de que a obra revele um novo Drummond.

Rima pobre, rima rica, versos alexandrinos, versos de pé quebrado; a universal dor-de-cotovelo, o patriotismo e a religiosidade, tudo muito naïf. Não importa; essencial, em Dois Córregos, é escrever. E poesia.

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O embrião da poetice surgiu em 1990, quando o empresário José Eduardo Mendes Camargo, 57, administrava a usina de açúcar e álcool da família. Diretor da Fiesp, José Eduardo convidou gente como o técnico Telê Santana (1931-2006) e o sertanista e indigenista Orlando Villas Bôas (1914-2002) para falar sobre qualidade de vida a 2.000 funcionários.

À época, o propósito não era só mudar o contexto da empresa, mas também da comunidade. “Percebemos, porém, que não adiantaria trabalhar somente a geração atual. Havia uma necessidade de envolver também as futuras”, lembra José Eduardo, hoje ex-usineiro e maior produtor de noz macadâmia do país.

No passo seguinte, 13 professores mergulharam num projeto que, durante um ano, discutiu questões existenciais e formas de melhorar a vida na cidade. Daí para a poesia foi um tico, acelerado pela descoberta que o próprio empresário, em plena fase madura, fez da poesia.

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Em 1995, José Eduardo criou a ONG Usina de Sonhos, para estimular a criação poética a partir da formação de professores de escolas públicas e particulares. Por falta de verba, a iniciativa deu uma esfriada de 1998 até o segundo semestre do ano passado. Em setembro de 2006, a proposta bifurcou no projeto Entre Versos, voltou a ganhar corpo e foi estendida a outras instituições de Dois Córregos.

Voltei
É parte do que a Folha viu lá. Até um padre fala na reportagem. Também faz poesia e escolhe os oprimidos, diz. Afirma existir trabalho quase escravo na lavoura de cana. É mentira. Deve ser ele que quase me levou a abrir um debate em plena procissão de Corpus Christi: a cada estação da Paixão, deitava discurso sobre o MST e os Povos Vítimas de Barragens ou coisa parecida. Como sabem, essa é uma praga que dá em qualquer lavoura… As fotos jogam um olhar um tanto folclórico sobre a cidade que parece ter preguiça de crescer. Cada homem sonha com sua infância, e gostamos de sonhar com uma espécie de infância do Brasil.

Assinantes podem ler os textos nos links abaixo:
Por que rimar amor e dor
Lendas e goiabada cascão
Desejo de expressão
Dois Córregos (SP)
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