A Comissão de Constituição e Justiça do Senado marcou para a quarta-feira, dia 5 de junho, a sabatina do advogado Luís Roberto Barroso, indicado pela presidente Dilma Rousseff para assumir a vaga aberta no Supremo Tribunal Federal. A ideia é submeter o nome ao plenário no mesmo dia. O Brasil é assim: a presidente demora seis meses para fazer uma indicação, e depois os senadores ficam impedidos até de respirar. Não terão nem tempo de refletir sobre as respostas de Barroso. Afinal, é para aprovar, não para pensar. Vital do Rêgo (PMDB-PB) é o relator. Seu texto, que ele já anuncia cheio de encômios, está pronto e deve começar a ser conhecido hoje pelos senadores. Não que eu duvide do esforço do senador. Mas fui eu mesmo me encarregar de ler algumas coisas da lavra do futuro ministro. Se vocês clicarem aqui, terão acesso a dez páginas, digitalizadas, do livro “O Novo Direito Constitucional Brasileiro”, que traz por subtítulo “Contribuições para a construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil”. Também andei lendo outras coisinhas. É… Barroso, vi no seu site, gosta de Beethoven, de Ana Carolina e de Taiguara. E não chega a ser um homem muito modesto. Parece que o Direito Constitucional no Brasil se divide em duas eras: “a.B.” e “d.B.” — “Antes de Barroso” e “Depois de Barroso”. Atenção, senadores! O futuro ministro do Supremo, que vai passar, como de hábito, por um MERO RITUAL HOMOLOGATÓRIO AÍ NA CASA, acha que “em muitas situações, em lugar de se limitar a aplicar a lei já existente, o juiz se vê na necessidade de agir em substituição ao legislador. A despeito de algum grau de subversão ao princípio da separação de Poderes.” Vossas Excelências entenderam ou precisam de um desenho?
Pois é… Parte das páginas que torno disponíveis no link acima trata do chamado “ativismo judicial”. Como sabem, doutor Barroso, fazendo eco a descontentamentos no Congresso com o Supremo, afirmou numa palestra, já depois de indicado, o que segue em vermelho:
“Em uma democracia, decisão política deve tomar quem tem voto (…) O Judiciário deve ser deferente às escolhas feitas pelo legislador e às decisões da administração pública, a menos que — e aí, sim, se legitima a intervenção do Judiciário — essas decisões violem frontalmente a Constituição. Aí, sim, por exceção e não por regra, o Judiciário pode e deve intervir.”
É… Escrevi, então, um texto post a respeito intitulado “Uma restrição severa e algumas questões de ordem intelectual e técnica a Barroso, futuro ministro do Supremo”. Doutor Barroso não era, afinal, aquele que havia levado a questão da união civil de homossexuais ao Supremo, que havia defendido o aborto de fetos anencéfalos, que emprestara sua verve à pesquisa com células-tronco embrionárias? Então isso tudo não seria ativismo judicial? Pois é… Nas páginas que torno disponíveis (transcreverei trechos aqui), ele se explica.
E É BOM OS SENADORES FICAREM ATENTOS. DOUTOR BARROSO CONSIDERA, PELO VISTO, QUE ATIVISMO JUDICIAL PERNICIOSO É AQUELE EXERCIDO EM QUESTÕES COM AS QUAIS NÃO CONCORDA, E ATIVISMO JUDICIAL VIRTUOSO É AQUELE EXERCIDO EM QUESTÕES QUE CONTAM COM A SUA APROVAÇÃO. Reproduzirei em vermelho alguns trechos.
Atenção, para isto, senhores senadores! Leiam o trecho que está na página 39 do livro:
“A ascensão do Judiciário deu lugar a uma crescente judicialização da vida e a alguns momentos de ativismo judicial. Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas pelo Judiciário. Trata-se, como intuitivo, de uma transferência de poder das instâncias tradicionais, que são o Executivo e o Legislativo, para juízes e tribunais. Há causas diversas para o fenômeno. A primeira é o reconhecimento de que um Judiciário forte e independente é imprescindível para a proteção dos direitos fundamentais. A segunda envolve uma certa desilusão com a política majoritária. Há uma terceira: atores políticos, muitas vezes, para evitar o desgaste, preferem que o Judiciário decida questões controvertidas, como aborto e direitos dos homossexuais. No Brasil, o fenômeno assume uma proporção maior em razão de a Constituição cuidar de uma impressionante quantidade de temas. Incluir uma matéria na Constituição significa, de certa forma, retirá-la da política e trazê-la para o direito, permitindo a judicialização. A esse contexto ainda se soma o número elevado de pessoas e entidades que podem propor ações diretas perante o STF.”
Voltei
Epa, epa, epa! Há coisas complicadas num trecho tão curto.
1: Doutor Barroso vê uma certa desilusão com a política — e entende que o Judiciário ocupa o seu lugar;
2: Doutor Barroso diz que um tema que vai parar na Constituição, “de certa forma”, sai da esfera política. Bem, se for assim, decrete-se o fim da política, então.
3: Doutor Barroso diz que “atores políticos” preferem que o Judiciário cuide de termas controvertidos como “aborto e direitos dos homossexuais”… Preferem? Pergunta óbvia: o Congresso, por acaso, não se manifestou, de um modo ou de outro, nos dois assuntos?
Vejam que curioso: quem patrocinou as duas causas no Supremo? Acertou quem chutou “Doutor Barroso”. Quando apontei, no meu texto da semana passada, que ele próprio era o rei da judicialização que condenara, alguns idiotas e candidatos a áulicos vieram aqui me acusar de não entender a questão, sustentavam que o que o advogado fizera era outra coisa etc. Pois é… Como se nota, ele próprio admite. Só que considera que a judicialização que é do seu agrado é boa; ruim é a que não está de acordo com os seus princípios.
Segundo o texto que vai acima, o Supremo pode legislar até sobre unha encravada e espinhela caída. Mas sigamos com ele, agora na página 40.
Ativismo Judicial
A judicialização ampla, portanto, é um fato, uma circunstância decorrente do desenho institucional brasileiro, e não uma opção política do Judiciário. Fenômeno diverso, embora próximo, é o ativismo judicial. O ativismo é uma atitude, é a deliberada expansão do papel do Judiciário, mediante o uso da interpretação constitucional para suprir lacunas, sanar omissões legislativas ou determinar políticas públicas quando ausentes ou ineficientes. Exemplos de decisões ativistas, além dos casos já mencionados, envolveram a exigência de fidelidade partidária e a regulamentação do direito de greve dos servidores públicos. Todos esses julgamentos atenderam a demandas sociais não satisfeitas pelo Poder Legislativo. Registre-se, todavia, que apesar de sua importância e visibilidade, tais decisões ativistas representam antes a exceção do que a regra. A decisão do STF sobre as pesquisas com células-tronco, ao contrário do que muitas vezes se afirma, é um exemplo de autocontenção. O Tribunal se limitou a considerar constitucional a lei editada pelo Congresso.
Comento
Vamos ficar no caso da união civil de homossexuais, citada por ele mesmo — causa em que atuou. Havia, por acaso, alguma “lacuna” na Constituição? E no caso do aborto de anencéfalos? É lacuna o que há no Código Penal ou na própria Constituição, que protege a vida? Para o doutor já indicado por Dilma que disse há menos de uma semana que, “em uma democracia, decisão política deve tomar quem tem voto (…)” — COISA COM A QUAL CONCORDO —, o doutor que escreve livros parece pensar coisa diametralmente oposta, sempre partindo, claro!, do princípio de que as palavras fazem sentido. Ou não foi ele quem escreveu isto: “Todos esses julgamentos atenderam a demandas sociais não satisfeitas pelo Poder Legislativo”?
Afinal de contas, o doutor acha que “decisão política deve tomar quem tem voto” ou acha que o Judiciário deve atender “a demandas não-satisfeitas da sociedade”? Num caso, o Judiciário não legisla; no outro, sim! Até porque as reivindicações são infinitas, não é? Também me incomoda um pouco esse conceito de “demandas da sociedade”. Quem é “a sociedade”, cara- pálida? Ela certamente não se resume aos lobbies organizados e influentes, sejam eles econômicos, culturais ou comportamentais. Indago: casamento gay e aborto são “demandas da sociedade”? De qual sociedade?
Como ignorar que o texto do doutor embute a ideia de que a representação parlamentar é, digamos, deficiente? Que cabe ao Judiciário corrigir o que o povo não fez direito? Ora, vocês sabem que tenho horror ao populismo judicial, mas sabem também que recuso a ideia de que cabe aos outros dois Poderes “corrigir” a representação parlamentar.
O doutor e o Judiciário à esquerda – Ahhh…
No pé da página 40, Barroso decide, como diz, neutralizar as críticas daqueles que apontam o ativismo judicial. E faz um raciocínio realmente especioso. Leiam. Comento em seguida.
(…)
uma democracia não é feita apenas da vontade das maiorias, mas também da preservação dos direitos fundamentais de todos. Cabe ao Judiciário defendê-los. Em segundo lugar, é possível sustentar que, na atualidade brasileira, o STF está à esquerda do Congresso Nacional. De fato, quando o Tribunal decidiu regulamentar o aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, as classes empresariais acorreram ao Congresso, pedindo urgência na aprovação da lei que tardava. Ninguém duvidava que o STF seria mais protetivo dos trabalhadores que o legislador. Quanto à capacidade institucional, juízes e tribunais devem ser autocontidos e deferentes aos outros Poderes em questões técnicas complexas, como transposição de rios ou demarcação de terras indígenas. Por fim, a judicialização jamais deverá substituir a política, nem pode ser o meio ordinário de se resolverem as grandes questões. Pelo contrário. O Judiciário só deve interferir quando a política falha.
Comento
Não há como! O que está escrito acima é uma coisa só, que se vai confirmar na sequência: a política, para doutor Barroso, falha sempre que está “à direita do Judiciário”, e o Judiciário acerta sempre que está à esquerda da política. Sim, ele acha que juízes e tribunais devem ser “autocontidos”, desde que concordem com o que faz o Legislativo. Se não for assim, têm de entrar em ação e fazer a balança pender para a esquerda. Apaixonado pela própria atuação, ele volta à questão da união civil de homossexuais, causa que ele patrocinou . Atenção!
A defesa de um Judiciário mais “discricionário”
O Judiciário não apenas ocupou mais espaço como, além disso, sua atuação se tornou mais discricionária. Em muitas situações, em lugar de se limitar a aplicar a lei já existente, o juiz se vê na necessidade de agir em substituição ao legislador. A despeito de algum grau de subversão ao princípio da separação de Poderes, trata-se de uma inevitabilidade, a ser debitada à complexidade e ao pluralismo da vida contemporânea. Foi o que ocorreu no exemplo do reconhecimento das uniões homoafetivas, referido acima. Diante da ausência de norma disciplinando a questão, o Supremo Tribunal Federal precisou criar uma. Evidentemente, como é próprio, não se trata do exercício de voluntarismo judicial, mas, sim, de extrair do sistema constitucional e legal a melhor solução. O mesmo se passa no tocante à interrupção da gestação de fetos anencefálicos. À falta de regra expressa, a Corte construiu – com acerto – a que melhor equacionou o problema.
Comento
Sinto-me intelectualmente, como posso dizer?, vingado. Se não fui o único jornalista, fui dos poucos que chamaram a decisão do STF de “discricionária”, de subversora do princípio da separação de Poderes, de usurpadora do papel do legislador, ainda que eu seja favorável à união civil gay. Eis que doutor Barroso também acha tudo isso, como se nota acima. Ocorre que ele considera essa subversão positiva. Eu não! Por razões que desconheço, insiste num absurdo: a suposta falta de “uma norma disciplinando a questão”? Como assim? O Artigo 226 da Constituição define a união civil, no parágrafo 3º, “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.” O Código Penal define os casos em que pode haver aborto legal. “Ah, mas não fala dos anencéfalos…” Sim, e nem de outros males que podem provocar efeitos semelhantes. Ora, doutor Barroso sabe, parece (já se mostrou, por palavras oblíquas, simpático à descriminação do aborto), que, atrás da legalização do aborto por anencefalia, virão pedidos relacionados a outras doenças e síndromes.
Chamo a atenção para isto: “Em muitas situações, em lugar de se limitar a aplicar a lei já existente, o juiz se vê na necessidade de agir em substituição ao legislador.” Aí está a licença para qualquer coisa. Nem Roberto Lyra Filho, o delirante teórico do “direito achado na rua”, foi tão sintético (até porque era verborrágico) e contundente. Sim, doutor Barroso admite que há nisso “certo grau de subversão da independência entre os Poderes”. Teremos um ministro do Supremo que vê com bons olhos essa “certa subversão” e que, quando advogado, fazia questão de patrociná-la.
Sim, caros, encontrei outras coisas notáveis no livro de doutor Barroso. Voltarei ao tema, claro. Eu sabia bem o que estava escrevendo quando, no primeiro momento, afirmei que Dilma havia feito uma nomeação pautada pela “correção” ideológica.