Assine VEJA por R$2,00/semana
Reinaldo Azevedo Por Blog Blog do jornalista Reinaldo Azevedo: política, governo, PT, imprensa e cultura
Continua após publicidade

A fábula do partido que criou a “Carteirinha Corrupção” num país chamado Banânia. Querem ler um texto estranho? Então lá vai!

Os meus leitores sabem do apreço que tenho por Robert Musil e por “O Homem Sem Qualidades”. Os eventos — ou não eventos — que ele narra se passam num país chamado Kakânia. Kakânia é um lugar imaginário em que a corrupção, quando há, se dá na esfera das vontades; as covardias, nunca grandes demais, […]

Por Reinaldo Azevedo Atualizado em 31 jul 2020, 07h20 - Publicado em 27 nov 2012, 05h17
  • Seguir materia Seguindo materia
  • Os meus leitores sabem do apreço que tenho por Robert Musil e por “O Homem Sem Qualidades”. Os eventos — ou não eventos — que ele narra se passam num país chamado Kakânia.

    Publicidade

    Kakânia é um lugar imaginário em que a corrupção, quando há, se dá na esfera das vontades; as covardias, nunca grandes demais, se revelam na área do intelecto; a decadência, inexorável, é a da inteligência. As pusilanimidades são quase existenciais, traduzidas por suspiros, nunca por estrondos (esse contraste já é um clichê, mas não resisti).

    Publicidade

    Falta a Kakânia a exuberância tropical. Não socorrem aquele país os pistoleiros do sangue quente que estão abaixo da linha do Equador, onde só há perdão, nunca pecado. Kakânia não conhece as graças bonachonas e incivilizadas do “homem cordial”. Kakânia não tem nem mesmo o hábito de punir os santos, como se faz, dizem, em certo país ignoto, de que falarei. E é punição preventiva, com características de chantagem e tortura! Põe-se, por exemplo, a imagem do santinho de ponta-cabeça, às vezes mergulhado num copo d’água. Se ele quiser sair daquela situação difícil, que trate de realizar o desejo do esperançoso e doce torturador. É a forma que a crença tomou, dizem, em tal terra estranha.

    Chamemos aquelas paragens exuberantes, em homenagem a Musil, de Banânia. Pronto! Em Banânia, os amores e os ódios estão sempre à flor da pele. Banânia não tem ascetas e monges para inspirar uma filosofia da contemplação e da medida; para exaltar as ideias “magras e severas”. Em Banânia, os que pensam a economia do espírito são os sátiros e os beberrões. O direito do outro e o direito dos outros são vistos como censura à liberdade individual e incapacidade para o gozo. Qualquer um, em Banânia, pode ser ruim da cabeça; a única coisa indesculpável é ser doente do pé. Os bananienses são, à sua maneira, fatalistas e acham que não há homem na Terra que resista a certas paixões, como caipirinha (bebida local) e bundalelê (bundalelê local).

    Publicidade

    A carteirinha
    Este país singular, conta-me um nativo, deu à luz uma nova forma de gestão do Estado que é a “Carteirinha Corrupção”. É isto mesmo. Ela é fornecida por um partido político para evitar que os amorosos achacadores, olê, olê, olê, olá, exagerem na cobrança de propina. Eu explico.

    Continua após a publicidade

    Deu-se em Banânia algo realmente notável. Empresas das mais diversas áreas, prestadoras de serviço ou fornecedoras, têm duas tabelas: uma para seus parceiros da própria iniciativa privada e outra para o governo. O Poder Público, em Banânia, costuma contratar serviços por um preço que pode corresponder a cinco vezes o valor de mercado. É que vai embutida, entre outras delicadezas da civilização da cordialidade, a propina que tem de ser paga ao partido (em Banânia, quem dá as cartas é o PTT), ao chefe da área, ao chefão do chefão…

    Conta-me um nativo de Banânia que, num desses acertos de conta mensais, o representante do “Sistema” afirmou que o valor que estava na maleta já não era mais suficiente; doravante, teria de ser o dobro. O pagador se espantou e resolveu subir a escala hierárquica para reclamar: “Como pode? Assim o negócio fica inviável!”.

    Publicidade

    Recebeu, então, uma “carteirinha” — a “Carteirinha Propina”. Foi informado de que o documento o protegia de achacadores fora do controle, entenderam? Aquele documento deixaria claro que ele já era um “colaborador” e que nada de extra lhe poderia ser, então, exigido.

    Banânia, vejam vocês, é, então, este país encantador, notório por sua aversão à institucionalização de procedimentos; conhecido por sua hostilidade a um estado impessoal, que fosse gerido por um burocracia regular, estatutária, avessa a arranjos e jeitinhos. Ao contrário: esse país gosta da informalidade e considera que a rigidez legal é coisa de povos tristes, que ainda não se deixaram amolecer pelos trópicos. E é justamente essa Banânia a ter esses caprichos, não é?, que resultam na formalização da corrupção e da propina. É, assim, como se fosse um passe-livre fornecido por um comando militar em tempos de guerra, que dá ao portador o direito de ir e vir sem ser importunado pela soldadesca de mais baixa estirpe.

    Publicidade
    Continua após a publicidade

    Isso acontece em Banânia, conta-me o nativo da terra. Ele me disse que o tal PTT sempre considerou que faltava à economia de mercado a devida dimensão ética, que consiste, ele entende agora, não na criação de uma ética do mercado, mas de um mercado da ética.

    Eu fiquei espantadíssimo com os sucessos de Banânia. E mais espantado fiquei quando ele me contou que se descobriu que uma quadrilha operava no coração do próprio governo. “Mas a imprensa no seu país, ao menos, é livre, né?”, indaguei. Ele me disse que sim. “Que bom! Ao menos isso!” Mas aí ele emendou: “É livre, sim! E boa parte dela está aplaudindo o governo que nomeou a quadrilha por sua suposta coragem de demiti-la”.

    Publicidade

    Olhei com tristeza e até com compaixão meu amigo de Banânia!

    Texto publicado originalmente às 3h27
    Publicidade
    Publicidade

    Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

    Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

    Domine o fato. Confie na fonte.

    10 grandes marcas em uma única assinatura digital

    MELHOR
    OFERTA

    Digital Completo
    Digital Completo

    Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

    a partir de R$ 2,00/semana*

    ou
    Impressa + Digital
    Impressa + Digital

    Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

    a partir de R$ 39,90/mês

    *Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
    *Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

    PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
    Fechar

    Não vá embora sem ler essa matéria!
    Assista um anúncio e leia grátis
    CLIQUE AQUI.