Em setembro de 2021, a saxofonista americana Lakecia Benjamin, 39 anos, sofreu um gravíssimo acidente de carro que a deixou a beira da morte. Ela quebrou três costelas, fraturou uma escápula, teve um tímpano perfurado, danos neurológicos e, o pior de todos, a mandíbula quebrada – um golpe e tanto para uma musicista de instrumento de sopro. Naquele momento, Lakecia enfrentava ainda outra barra na vida pessoal, após perder 15 membros de sua família para a Covid. O renascimento da artista ocorreu de maneira espetacular. Três semanas depois do acidente, ela voltou a tocar e viajou para Europa onde fez uma turnê. No início deste ano, lançou seu mais recente trabalho, o álbum Phoenix, cujo sugestivo título celebra sua recuperação.
Neste sábado, 13, às 18h, no Parque Villa Lobos, em São Paulo, a artista será uma das atrações do festival Mimo, com entrada gratuita, onde ela demonstrará ao vivo que sua recuperação foi plena. Na terça-feira, 16, às 21h, ela se apresenta no Rio de Janeiro, na Cidade das Artes, na edição fluminense do festival. Nos dois espetáculos, Lakecia tocará as canções do novo álbum, que contou com a participação de várias mulheres, como a ativista dos direitos civis, Angela Davis, a poetisa Sonia Sanchez e a pianista e cantora de R&B Patrice Rushen.
Ao longo da carreira, iniciada lá nos primórdios dos anos 2000, Lakecia acumulou algumas conquistas especialmente emocionantes, como ter sido convidada a tocar com (e receber elogios) de Stevie Wonder, e a se apresentar na posse do ex-presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, em 2009. Lakecia conversou com VEJA sobre os shows no Brasil e relembrou do dia que tocou pela primeira vez com Stevie Wonder. A seguir os principais trechos:
O Brasil sempre foi um celeiro de bons músicos de jazz. O que já ouviu da música brasileira? Tenho alguns amigos brasileiros aqui nos Estados Unidos. Tocamos juntos o tempo inteiro. Espero ter uma experiência incrível no Brasil. Ouvi coisas excelentes sobre a comida, a cultura e a alma dos brasileiros. Estou esperando fazer uma festa no palco. Conheço alguma coisa da música brasileira. Meus familiares tocavam pandeiro e estudaram muito os percussionistas brasileiros. Nenhum músico é verdadeiro se não estudar a percussão do Brasil.
Tal como a ave mitológica fênix, que dá nome ao seu disco, você sente que renasceu das cinzas após o grave acidente que sofreu? Absolutamente. Pensei que estava morta. Lembro-me de estar carro sem entender o que estava acontecendo. Acordei no hospital com dores excruciantes no corpo e sangue por toda parte. Eu realmente pensei que fosse morrer. Tudo isso ocorreu durante a pandemia quando não sabíamos o que iria acontecer no mundo. Perdi 15 membros da minha família para o Covid. Muitos de nós estávamos apenas sentindo o peso do mundo. Eu quis fazer um projeto que mostrasse a resiliência das pessoas que já passaram por muitas coisas. A mensagem que quero passar é que não importa o que está acontecendo na sua vida, apenas continue tentando e tentando.
Essa resiliência sua também foi demonstrada ao lidar com as 15 mortes dos seus familiares, não? É horrível. Não há palavras para descrever o que enfrentamos em um espaço tão curto de tempo. Eu não tinha certeza do que iria acontecer na minha vida. Eu nunca tinha andado de ambulância na vida e de repente eu estava com a minha mandíbula quebrada. E ela é crucial para tocar saxofone. Não sabia se eu iria me curar. As costelas quebradas, problemas para caminhar, sem forças nos braços. Não tinha certeza qual seria o meu destino.
Hoje você é uma das maiores saxofonistas da atualidade. Para chegar onde chegou, por ser mulher negra, sofreu muitos preconceitos? Não diria preconceito. Eu diria que o que sofri foi um reflexo do mundo. A maioria das profissões: médicos, advogados, caminhoneiros, são profissões tidas como masculinas. Então, eu não diria que o jazz é preconceituoso. Acho que a música é um reflexo da sociedade que vivemos. Se eu fosse médica ou gari eu também enfrentaria as mesmas questões. Sinto não haver mulheres suficientes ainda ocupando importantes postos de trabalho.
Há o componente do racismo implícito também nesta equação? Sim e não. O jazz é uma música negra. Alguém pode até argumentar que há mais mulheres negras no jazz do que brancas. O fato é que ainda faltam mulheres. Algumas pessoas podem não querer te ver fazer sucesso porque elas têm as próprias ideias de como o jazz deve ser. São pessoas que constroem muros para impedir o progresso.
Em Phoenix você convidou várias mulheres inspiradoras para participar do álbum. Quando você começou a carreira, sentia falta dessa representatividade? Faltam mulheres inspiradoras na trompa, por exemplo. Mas eu poderia olhar para as bateristas Cindy Blackman e Terri Lyne Carrington, as pianistas Patrice Rushen, Geri Allen e Mary Lou Williams e dizer: ‘Uau! Olha o que elas conseguiram’. Mas, quando eu olho para o meu próprio instrumento, o saxofone, ainda vejo um vazio.
No festival Mimo, você participará do workshop Um Retrato do Novo Jazz. Você vê o jazz se renovando? Vejo sim. Nos Estados Unidos, Samara Joy ganhou um Grammy e ela soa como Sarah Vaughan. Terri Lynn Carrington também ganhou Grammy por seu trabalho. O público está interessado no jazz antigo, mas o novo jazz está acontecendo naturalmente. As pessoas estão ouvindo novas jazzistas de 20 e poucos anos.
A primeira vez que você tocou com Stevie Wonder foi bastante especial, durante a posse de Obama. Como foi que esse encontro? Me perguntaram se eu poderia tocar saxofone durante uma premiação de Maya Angelou. Lógico que aceitei. Durante a apresentação alguém chegou para mim dizendo precisarem de um saxofonista para tocar em Washington. Não deu tempo nem de pegar um casaco. Nesta época do ano faz muito frio lá. Chegando lá me deram o instrumento e pediram para eu acompanhar a banda. Eu já estava ficando cansada e pedi para falar com o líder da banda. Quando eu virei o rosto, eu vi um homem careca com aqueles dreadlocks. Era Stevie Wonder. Ele sobe no palco, algumas pessoas o ajudam a encontrar o microfone. Ele começa a tocar as músicas dele que todos nós já conhecemos. No momento do solo, eu sabia que era feito para sax alto e eu comecei a tocar. Todos ficaram olhando para mim e Stevie Wonder dizendo: “continue, continue”. Ao final do show o baterista disse que Stevie queria falar comigo e ele me convidou para fazer mais alguns shows com ele. Foi inesquecível.