Rita Lee começou a escrever em 2005 O Mito do Mito, livro póstumo que chega às livrarias nesta segunda-feira, 29. O texto ficou esquecido em alguma gaveta da artista, até que, dez anos depois, ela começou a trabalhar nele novamente. Neste meio tempo, Rita lançou um livro de fotos e sua autobiografia, e deixou a obra guardada. Debochada e sem papas na língua, a cantora avisou que o texto, finalizado em 2019, após a descoberta do câncer de pulmão, só deveria ser lançado após sua morte, já que a história mistura ficção com fatos reais. “Artista morto vale mais, tem uns que viram até mito. Além do mais, não quero ninguém me perguntando de meras coincidências com fatos ou pessoas reais”, escreveu a autora na apresentação do livro.
Lá pelo meio do livro, outra provocação: “Se (o artista) morrer e deixar uma obra recém-lançada, ou inédita, a família agradece”. No enredo, a cantora vai a um psicólogo que só atende após o pôr do sol em um consultório no Centro de São Paulo. Tudo muito sinistro. Para se precaver, ela recruta sua irmã Vivi para ficar no terreno ao lado ouvindo toda a conversa pelo fone de ouvido do celular de Rita. No divã, a cantora busca a resposta para sua pergunta fundamental: “É melhor ser fã ou ser artista?”.
Fã de James Dean, Rita sabe o que é devotar seu tempo a um artista. Ídolo de uma geração de brasileiros, ela também sabe o que é ter fãs. O livro, portanto, funciona como uma declaração de amor da artista aos seus ídolos e fãs, ao mesmo tempo que ela passa a limpo momentos dramáticos da sua vida pessoal e profissional. Sempre aberta a respeito de suas qualidades e defeitos, Rita escreve sobre vícios e inseguranças com uma sinceridade que meros mortais só se sentiriam seguros para assumir no divã do psicólogo (ainda que ele só atenda de madrugada).
Sabidamente, muita gente vai querer, sim, saber o que é verdade ou mito na história. Quem leu as duas biografias da artista, lançadas em 2016 e em 2023, identificará facilmente o que é verdade. As novidades, essas, jamais serão esclarecidas. Para os fãs, no entanto, Rita entrega alguns presentes, entre eles uma letra de uma música inédita, dedicada a Dercy Gonçalves, intitulada Dercy Beaucoup (1847), cujos versos dizem: “Mostrou peito, bunda e xibiu / A veia tem nitroglicerina na veia / Centenária rainha do Brasil”.
Uma das grandes virtudes da cantora foi sua sinceridade. Ela foi, de longe, a artista brasileira mais transparente sobre sua história. Quando não gostava de uma pessoa, ela dizia. Quando gostava, também. As barras que enfrentou foram escancaradas. Talvez por isso após sua morte não surgiram boatos ou polêmicas, típicos de artistas que, em razão da privacidade, nunca contaram sobre seus amores e desamores ou dos vícios e virtudes, deixando a criatividade fértil do público imaginar os segredos da alcova. Com Rita, não. Ela contou e cantou tudo. Ela sabia, porém, que, por mais transparente que a vitrine fosse, o pior mesmo era lidar com a imaginação de alguns. Ela lembra, por exemplo, do primeiro Rock in Rio (1985), quando usou uma peruca no ensaio para não revelar seu novo corte de cabelo e saíram notícias dizendo que ela estava careca porque estava fazendo quimioterapia. Era mentira, claro. Anos depois, quando Rita, infelizmente, foi diagnosticada com câncer, ela revelou tudo para o público.
De uma lucidez impressionante, Rita solta divertidos petardos contra fãs sem noção e artistas piores ainda. E avalia, com razão, que artista morto vira mito. “Devo admitir que gosto de funeral de artista. Conhecemos a popularidade de um artista pela performance dos fãs tão logo anuncia a morte do famoso. Fila para dar adeus ao caixão é um must”, escreve ela, e com bom humor emenda: “Mas nunca se deve cometer o maior dos erros: morrer em dia ou época que algo importante esteja acontecendo. Pobre da celebridade que morre no meio de uma Copa do Mundo”. Antenada com os humores dos novos tempos, dá uma dica para um fã neófito: “Exija o selo de garantia dele (do famoso), ou alguma prova de que você está consumindo um produto cuja validade do talento ultrapasse os quinze minutos de fama”.
O que mais surpreende no livro, no entanto, é o tremendo complexo de impostor que Rita tinha. Em um trecho, ela diz que acredita ser uma excelente atriz que, com sua interpretação, engana há mais de 40 anos o público sobre seu talento musical. Os fãs sabem que é uma bobagem. Rita foi, sim, a maior roqueira do Brasil e seus inúmeros sucessos estão aí para comprovar.
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