Dono dos famosos agudos de Livin’ on a Prayer, Jon Bon Jovi alarmou os fãs há um mês com uma revelação dramática. O roqueiro americano de 62 anos confidenciou que, após operar as cordas vocais, não se sente capaz de fazer shows — e sinalizou uma eventual aposentadoria. Embora seus problemas sejam reais, a declaração foi milimetricamente pensada para outro fim: despertar interesse pela série documental Thank You, Goodnight: A História de Bon Jovi, já disponível no Star+. Em quatro episódios, o programa acompanha o músico de Nova Jersey em sua última turnê, em 2023, marcada por críticas à sua voz e pela ruidosa briga com seu principal parceiro, o guitarrista Richie Sambora — que havia deixado a banda alguns anos antes e participa do doc contando uma versão pouco convincente do rompimento. Ao final, a verdadeira utilidade da série fica clara: Bon Jovi anuncia seu novo álbum, Forever. Spoiler: sem Sambora nas guitarras.
Cross Road – Bon Jovi [Disco de vinil]
Com o chapa-branca Thank You, Goodnight, Bon Jovi reforça um fenômeno curioso: numa era em que essas produções ganharam peso nas plataformas de streaming, toda celebridade quer um doc para chamar de seu. Nos últimos anos, esses programas surgiram aos montes, acenando ao espectador com acesso inédito à intimidade de famosos tão díspares quanto astros de ação e divas pop, de Arnold Schwarzenegger e Sylvester Stallone a Lady Gaga ou Selena Gomez.
Let’s Talk About Love – Celine Dion [Disco de vinil]
Não é difícil detectar o pulo do gato dos novos documentários. Eles fascinam o público ao vender um mergulho confessional nas fragilidades dos grandes artistas — expondo como, lá no fundinho, eles são gente como a gente. Algumas produções são de fato impactantes e expõem histórias reais corajosas. O ator americano Val Kilmer se abre de forma tocante sobre o câncer que arruinou sua carreira num filme de 2021; em junho, chegará ao Prime Video o antecipado I Am: Céline Dion, em que a cantora canadense mostrará os bastidores de sua luta contra a síndrome da pessoa rígida, doença autoimune que afeta o sistema nervoso central. Mas mesmo os melhores docs da safra atual oferecem um anteparo valioso aos artistas: seus rasgos de franqueza e até as confissões mais dolorosas se dão sempre num ambiente controlado e seguro.
Como as celebridades têm total controle da narrativa, os documentários se transformaram, sobretudo, em excelentes peças de autopromoção. A Netflix desbravou a seara em 2017, quando lançou Five Foot Two, produção em que Lady Gaga conta como lida com a fibromialgia, doença que lhe causa dores lancinantes. Num expediente narcisístico típico, a musa pop fala de dor, mas faz questão de enfatizar seu poder: a certa altura do filme, posta um vídeo no Instagram e imediatamente recebe milhões de likes.
Seja útil: 7 ferramentas pra vida – Arnold Schwarzenegger
Nos casos de Arnold Schwarzenegger e Sylvester Stallone, que também lançaram produções autobiográficas na Netflix, demonstra-se outro uso marqueteiro dos docs: eles servem para amenizar sua imagem de brutamontes machistas e egocêntricos. Os dois atores participam dos programas um do outro para falar de sua propalada rivalidade — sempre com declarações elogiosas. E os dramas verdadeiros em suas biografias são amortizados por uma narrativa açucarada. Schwarzenegger expõe detalhes sobre o passado nazista do pai e se abre sobre o filho Joseph Baena, fruto de um relacionamento fora do casamento. Stallone dedica boa parte do tempo a falar do filho Sage, que sofria de depressão e morreu aos 36 anos, e também de seu pai, Frank, homem violento que jamais aprovou sua carreira. O espectador sai dos programas nutrindo mais simpatia pelos pobres fortões.
Katy Perry o Filme: Part of Me [Blu-ray]
Na música, Katy Perry foi uma das primeiras a se expor dessa forma, em Katy Perry: Part of Me, lançado nos cinemas em 2012. Boa parte do filme é dedicada a falar sobre como ela se recuperou de um divórcio e foi capaz de lançar um novo disco de sucesso. Lançado ano passado na Apple TV+, Minha Mente e Eu mostra os duros anos de tratamento de Selena Gomez contra o lúpus e o transtorno bipolar, justificando por que ela parou de fazer shows e decidiu virar atriz. Meses atrás, a Netflix trouxe a mania ao Brasil, com Se Eu Fosse Luísa Sonza, em que a cantora fala sobre vida amorosa, como lida com os haters e também de saúde mental — além de promover seu álbum mais recente, claro. A intimidade nunca teve tanto valor na tela.
Publicado em VEJA de 26 de abril de 2024, edição nº 2890