Para o filósofo australiano Peter Singer, “como gastamos o nosso dinheiro?” é uma pergunta que possui implicações éticas irrefutáveis. Para exemplificar suas ideias, ele criou a fábula do menino que está se afogando num lago coberto de lodo pegajoso. Visto que o lago não é fundo para um adulto, qualquer pessoa consciente sacrificaria seus sapatos de marca para entrar no lodo e salvar a vida do menino. Por outro lado, pouquíssimas dessas mesmas pessoas estariam dispostas a usar sapatos mais simples para, com o dinheiro excedente, salvar a vida de crianças que, vivendo na miséria ou sofrendo de doenças raras, não têm acesso a alimentos ou medicação adequada.
— Por que não mudar essa lógica e gastar um pouco do que temos em caridade?
Deve ter sido esse o pensamento dos milhares que fizeram doações para Jonatas Openkoski, criança catarinense que sofre de uma doença degenerativa e precisa de 3 milhões de reais para o tratamento. Graças ao apoio de celebridades como Danielle Winits e André Gonçalves, as arrecadações chegaram a 4 milhões de reais. Seria um final feliz se os pais de Jonatas não tivessem torrado uma parte da grana. Mudaram-se para uma casa chique, compraram um carro de luxo e foram passar o réveillon em Fernando de Noronha. Os detalhes do caso podem ser encontrados na matéria publicada pela Veja desta semana.
Como é possível explicar que pais, mesmo jovens, tenham agido dessa maneira? É pouco provável que Peter Singer tenha uma resposta segura para a questão. Por isso vamos transferir a pergunta a outro filósofo, o francês Gilles Lipovetsky, um dos principais teóricos do que poderíamos chamar de “pós-moralismo”, período meio real e meio ideal em que viveríamos livres da onisciência de um Estado e de um Deus que nos obrigam a agir conforme as regras de uma moral coletiva. Os pais de Jonatas, nesse sentido, seriam os exemplos mais radicais e caricatos de uma tendência contemporânea global.
Desde o fim do século XX, segundo Lipovetsky, teríamos autonomia para criar a nossa própria moral e assim nos voltarmos a um individualismo que, através do consumo desenfreado, obedece a uma única e solitária lei: a satisfação irrestrita dos desejos individuais. Pouco importam as questões éticas envolvidas, sepultadas que foram pela superação do existencialismo sartreano. O narcisismo e o egocentrismo do nosso tempo não encontram culpas capazes de impedir os excessos mais irritantes. O resultado está aí, essa ingenuidade meio cara-de-pau que se alastra pelo mundo. Deve ser por isso que os pais de Jonatas compartilharam fotos das férias e do carrão.
Seria bom adaptarmos o raciocínio de Peter Singer à nossa década. A pergunta que possui implicações éticas irrefutáveis é: “como gastamos o dinheiro… dos outros”?