Cena 1: num cenário de balada, com bebida e luzes intermitentes, Ayrton abraça a filha Ana Clara e lhe dá um beijo na boca. O ato demora mais do que o razoável para a audiência — mesmo a audiência do BBB, acostumada a tudo — até que a menina vira o rosto e interrompe o “selinho”.
Cena 2: Ayrton deita-se sobre Ana Clara, estendendo o braço sobre o sobrinho Jorge, ao lado, e começa a contrair as nádegas em movimentos de… fornicação? É o que parece. Não é de admirar o berreiro nas redes sociais. Em muitos lugares do Brasil, os namorados só alcançam esse tipo de intimidade depois que o namoro está bem adiantado.
Cena 3: Ayrton se aproxima de Ana Clara, enrolada numa toalha de banho, e pergunta se ela já está de calcinha. “Tô”, responde a filha. Como se nada fosse nada, Ayrton abre a toalha para verificar a veracidade da resposta. “Já estou!”, reitera ela, impaciente, no que ele abaixa a cabeça e se afasta como um cachorro amuado.
Cena 4: Eva, a mãe, fecha os olhos e sorri em algum canto da “casa mais vigiada do Brasil”.
Respondendo a pergunta ali do título, não tenho condições ou formação específica para determinar se as cenas são doentias, mas a verdade é que ninguém precisa tirar diploma para perceber que alguma coisa está errada nessa história.
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Ano passado, numa colaboração para a revista impressa, critiquei o Ministério da Cultura por ter recolhido o livro Enquanto o Sono Não Vem das bibliotecas escolares do Ensino Fundamental. O MEC alegou que a obra seria imprópria para crianças em idade de alfabetização porque um dos seus contos, A Triste História de Eredegalda, faz apologia do incesto. Na verdade, é o contrário que acontece.
Entre outras razões, os contos folclóricos surgiram porque nossos antepassados precisavam advertir os filhos de perigos que não datam de hoje. Mais do que uma inocente história infantil, Chapeuzinho Vermelho apareceu para prevenir as crianças contra o assédio sexual. Algo semelhante ocorre na história da Princesa Eredegalda.
Ao ser convidada para tomar o lugar da mãe, ela resiste à bestialidade do pai e acaba trancada numa torre, onde morre de sede. O clímax se dá quando o “senhor Jesus” aparece para levar a alma da menina aos céus. É a mesmíssima história de Santa Maria Goretti, da tradição católica, que morreu ao resistir a um estupro e ganhou o paraíso como recompensa.
Quando um padre conta a história de Santa Maria Goretti ou um professor lê o conto da Eredegalda, está criando condições psicológicas para que as crianças se defendam do autoritarismo e da barbárie, uma barbárie e um autoritarismo que podem vir, inclusive, dos próprios padres e professores. Ou de tios, padrinhos, padrastos e até mesmo pais biológicos irresponsáveis.
Nada melhor do que uma história para ensinar uma criança a dizer não.
Eu não ficaria admirado se esse Ayrton do BBB fosse a favor da censura da Eredegalda e similares. Pra que permitir que outras histórias invadam o seu reino? Como líder da Família Lima, ele detém o monopólio das narrativas e assim cria as regras que quiser no âmbito familiar, incluindo as regras que lhe permitem tocar a filha como se tudo estivesse muito bem, obrigado.
Tenho impressão de que as pessoas não se chocaram tanto com as cenas em si, mas com a naturalidade com que são aceitas pela filha e especialmente pela mãe. Julgá-las? Nada mais inútil. Tudo indica que há muito as duas participam de uma fábula em que “essas coisas” são normais porque provavelmente não conhecem os outros pontos de vista da mesma história.
Um desses pontos de vista poderia vir da escola e dos contos folclóricos, mas isso é impossível hoje em dia. Cada vez que algum tabu como o incesto vêm à tona na sala de aula, a gritaria dos moralistas faz com que tudo volte à estaca zero. Pais como o Ayrton agradecem, livres que ficam para agarrar suas filhas e depois se explicar com a simplicidade de um “pô, nada a ver”.
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