Ernest Hemingway se suicidou com um tiro de espingarda no dia 2 de julho de 1961. Não dá para adivinhar as razões que o levaram ao ato extremo — logo ele, um escritor rico, famoso e laureado com o Nobel —, mas é possível dizer que Hemingway não tomou aquele tiro sozinho. Toda uma época, um conjunto de costumes e até mesmo uma forma de cultura morriam com o autor de O Velho e o Mar. Com efeito, o último meio século não trouxe apenas mudanças profundas, mas também e sobretudo irreversíveis.
Hemingway frequentemente participava de safáris na África, onde atirava em leões e rinocerontes, amava a tauromaquia espanhola (que aparece em muitos de seus romances) e até a velhice praticou a nobre arte do pugilismo. Nos tempos de jornalista e até mesmo enquanto romancista consagrado, fez fama como correspondente de guerra. Esteve nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, bem como entre os voluntários da Brigada Internacional que combateu as tropas de Franco na Espanha e, é claro, não deixou de marcar presença no front dos aliados durante a Segunda Grande Guerra.
Sobre todos esses momentos decisivos do século XX, escreveu com brilho e paixão — “com verdade”, como costumava dizer aos amigos e às inúmeras mulheres com quem viajou pelo mundo. Hemingway era mais que um escritor de sucesso, era uma invenção de si mesmo, um ideal, um personagem fictício que acreditava viver no mundo das pessoas reais. Se estivesse vivo, não sossegaria antes de ser sequestrado por algum grupo terrorista ou pelo próprio Estado Islâmico.
O mundo de hoje, porém, tão falsamente asséptico e higienizado pela correção política, não tem mais lugar para Hemingway ou quaisquer de seus imitadores. Ele gostava de touradas? Que horror! Participava de safáris? Que assassino! Vivia trocando de mulheres (ou sendo trocado por elas)? Que canalha! É por isso que seus romances — com exceção do canto à perseverança que é O Velho e o Mar — estão caminhando para o esquecimento.
Mas há uma parte de sua obra, a princípio subestimada, que adquire importância cada vez maior: os contos. Quem quiser ler peças literárias que continuam atuais apesar das décadas que se passaram, basta procurar os contos de Hemingway. Além do conhecidíssimo Os Assassinos, vale a pena ler Gato na Chuva, tido por Gabriel Garcia Márquez como o conto mais bem escrito da literatura universal — a leitura se torna mais interessante na medida em que o leitor tenta descobrir o porquê dessa exagerada declaração.
Mais do que uma figura meio folclórica que se orgulhava de ter cabelo no peito, nos contos Hemingway aparece em toda a sua essência e, como gostava de repetir, em toda a sua “verdade”.