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A namorada chinesa de Camões inspirou o maior cacófato do idioma

O dilema atravessou os séculos e sobrevive até hoje: salvar a pessoa amada, ou a obra de uma vida?

Por Maicon Tenfen Atualizado em 4 jan 2018, 09h03 - Publicado em 4 jan 2018, 09h00
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  • Conta-se que Camões enfrentou inúmeros naufrágios em suas andanças pelo Oriente. O mais famoso se deu na foz do Rio Mekong, quando uma tempestade pôs a pique a caravela em que viajava.

    Na confusão que se seguiu, o poeta deparou com um dilema que atravessaria os séculos: de um lado, sumindo na imensidão das águas, viu a bolsa com o manuscrito d’Os Lusíadas; de outro, tomando os primeiros caldos e gritando por socorro, a sua bela namorada chinesa.

    A quem salvar?

    Veja que a resolução do problema não era tão simples quanto pensam os apressados.

    Camões sabia que Os Lusíadas tornar-se-iam o poema mais importante do idioma. Símbolo máximo da cultura portuguesa, é composto por 8816 decassílabos simetricamente heroicos (com tônica na sexta e na décima sílaba de cada verso), algo muito difícil de fazer, trabalho que lhe consumiu anos e mais anos de reclusão.

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    E a namorada chinesa… Ah, era doce e graciosa como um lírio num vaso de ouro, um pêssego em forma de gente, uma flor de tamareira. Dizem que se chamava Dinamene, tinha os olhos mais verdes que o poeta conheceu (algo raro numa chinesa) e declamava madrigais depois do amor.

    Se Camões salvasse Dinamene, Os Lusíadas desapareceriam nas águas inclementes; se salvasse Os Lusíadas, Dinamene é que afundaria e morreria afogada. Mais que violenta, a borrasca não permitia a alternativa de socorrer a obra e a amada ao mesmo tempo. Ou uma, ou outra, e o poeta tinha menos de dois segundos para decidir.

    Considerando que hoje o resumo d’Os Lusíadas aparece em todos os manuais de Língua Portuguesa da Europa, da América, da África e da Ásia, é óbvio que Camões ignorou as súplicas da pobre Dinamene e mergulhou para salvar a bolsa com o manuscrito. Tudo isso pode ser mentira, lenda, lorota, mas o poema dedicado à chinesa — bem como o espalhafatoso cacófato do verso inicial — são reais:

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    Alma minha gentil, que te partiste
    Tão cedo desta vida descontente,
    Repousa lá no Céu eternamente,
    E viva eu cá na terra sempre triste.

    Se lá no assento do Etéreo, onde subiste,
    Memória desta vida se consente,
    Não te esqueças daquele amor ardente,
    Que já nos olhos meus tão puro viste.

    E se vires que pode merecer-te
    Alguma coisa a dor que me ficou
    Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

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    Roga a Deus, que teus anos encurtou,
    Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
    Quão cedo de meus olhos te levou.

    Ele lamenta a morte daquela que deixou morrer? É isso mesmo?

    Mas o assunto era o cacófato, não? É o termo usado para indicar os sons pejorativos ou engraçados que se formam a partir de uma combinação involuntária de palavras. Assim, quando Camões escreveu “Alma minha gentil, que te partiste”, estava formulando (sem querer?) o cacófato “maminha”.

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    É claro que isso serve de reflexo defensivo para todos os que se atrevem a escrever. Se o maior dos maiores cometeu um cacófato logo na abertura de um soneto, é justo que se perdoem os escorregões dos modestos redatores que existem por aí, incluso este mortal que ora se enuncia.

    Resta perguntar se Camões agiu com correção ao preferir Os Lusíadas. O que você teria feito no lugar dele? A resposta a esse tipo de pergunta é capaz de revelar muito de nós mesmos ou do momento pelo qual passamos. Seja como for, lanço um conselho às Dinamenes do mundo: antes de se meterem com poetas, inscrevam-se numa academia de natação.

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