Ninguém criou, impôs ou usou em causa própria, mas o talismã existe e conduz nossa história. O clima é de não acelerar nada, mas também de não deixar parar qualquer coisa. É difícil ser simples, mas seu modelo é muito simples. É um dom nacional. Dar tempo ao tempo.
Enigma de racionalização não subordinado a qualquer paixão neste país colonizado por interpretações econômicas, políticas, ideológicas. Como entre nós a palavra não tem poder, a mágica cria as saídas. Estamos, outra vez, com velório na política. Abracadabra resolverá. Este o ofício do talismã.
Um paradoxo ver a pátria, essa mãe culpada, governada por um filho indiferente aos sentimentos humanos. Um privilegiado dando tão inconsistente e alta valorização aos seus atos – quais atos? Um crítico de tudo com baixa tolerância às frustrações pelas críticas que recebe.
Por sua inexpressividade nacional suas ações parlamentares sempre tiveram baixo custo político. Mas o talismã não achou justo vetar um, pois nunca achou ridícula a boa-fé do povo com demagogos. E deixou passar: de tanto encher linguiça, o homem sem imagem, que somente culpa os outros em busca transtornada por admiração, venceu a eleição. O povo nunca age preventivamente à má pronúncia da palavra. É apenas um troca-letras que fará mais um governo descoordenado.
Eis que ocorre o inesperado: uma crise de saúde mundial sincroniza com uma crise econômica geral agravada no Brasil somente porque ele, um sodado, quer transformá-la em guerra política particular. Encontra um economista dogmático, que também não sabe fazer curva. Dois caranguejos, bizarros e simétricos, capa dura, em linha reta para o muro.
O talismã então se movimenta. Como a autoridade faz o gênero traquina-insensível-às-conveniências, seu fim não prevê combate. A pátria tem outras finalidades que não as dele. O isolamento social mudou a história da polarização vazia da política, a força agora é a solidariedade, a ciência, a valorização dos sérios e bons de fato.
O talismã sabe que com os partidos e as instituições tecendo um círculo de artimanhas em torno da política eleitoral desde os anos 1990, chegamos em 2018 com o motor da insensatez no giro mais alto. De tanto ouvir não-é-esse-não-pode-ser-aquele, o iconoclasta virou ídolo. E assim, sentindo a negação da negação o povo jogou o jogo sem querer explicação. É do contra que eles são, é o contra que terão.
O tempo passa, e às apalpadelas, o talismã vai se esfregando no meio dos que estão na rua da amargura em desvantagem, os mais pobres de todo o gênero humano, os ricos enganados, os juízes engomados, os políticos anestesiados, e os faz continuar a acreditar nas coisas, sem por elas se interessar.
Vem o vírus. Logo abre conta na Caixa e a faz dar um show para frear a comoção. Empurra em poucos dias 600 reais na vida de 55 milhões de ocupados, desocupados e invisíveis e os encontra, 90% pela internet. Só o povo pré-pago vive no presente, sem futuro ou passado. Os incrédulos apertam a mão do presidente que simula estar bem.
Felizmente o talismã nutre nosso povo com qualidades singulares de passividade e não-cooperação ostensiva. Toca sua vida desemparado sem preocupação com a sociedade que o limita em sua mobilidade. Não quer ser inserido nada – ele já está muito mal inserido – o que quer é não ser pobre. Pesquisado, diz o que a pesquisa quer saber. Com esta particular forma de paz no coração desmascara a hipocrisia e deixa nua a retórica das frases que falam em poder do povo e interesse nacional.
No Congresso, no Supremo chovem denúncias. Assentam em cima, deixa o outro Poder avançar, suspender nomeação, testar positivo, freia ou acelera o tempo. Um velho toga dá entrevista para remoer ferida. Outros, a favor/contra/não sei não. O decano manda limpar logo o ouvido. O militar, no dispositivo, não gosta. Quer descer devagar, no andar do caranguejo. Golpe nimim não dá, choraminga o líder dislalias de sua alma.
A reportagem ao vivo aperta, solta, não encara o burlesco, respeita o desrespeitador. É o bolero de Ravel do talismã preparando o povo para esquecer devagarinho o desamor que lhe é dedicado por quem fala uma coisa na campanha e faz outra depois de eleito.
Pode até existir uma crença nos extremos da violência como forma redentora de desobediência civil. Porém, observando as saídas brasileiras para enfrentar a embromação e o caos provocado pela elite institucional, a calma não acordada contém muito mais sabedoria do que os que desdenham do Brasil conseguem captar.
É verdade que nossa ordem e progresso avança devagar e cheia de pendências. Mas aos trancos e barrancos o Brasil conseguiu em paz o que nenhum país conseguiu sem guerra. Este o nosso talismã, que sabe que a guerra é a pior doença.
Não é crime a frieza do coração. Ainda mais quando veste de poder um homem nulo e consegue revelar as formas desagradáveis que esconde. Mas o presidente se desesperou de fato quando o talismã informa que na linha de frente da batalha não há soldado. São enfermeiros, médicos, farmacêuticos, balconistas, entregadores, motoristas de taxis, governadores e prefeitos.
A pandemia desmilitarizou o patriotismo, tirou o monopólio do presidente armado, que passou a praticar tiro ao alvo nos ministros populares.
A ambição desmedida do poder combate-se com a ambição pelo ato mínimo, o fiador da justiça. E o mínimo é aplicar a lei, demovê-lo para investigação, pois quem o acusa é que o fez presidente. Não é traidor, pois, em política, Judas é quem não desconfia. A confiança absoluta é da ética das relações privadas, familiares.
Nos últimos anos quem se enforcou na política o fez com corda que ele próprio teceu. O talismã dos brasileiros é sonhador, não age com fins materiais. Nem acredita na consistência das declarações dos que não querem fazer a vigília do fim que se anuncia.
Paulo Delgado. É professor, sociólogo e consultor de empresas. Foi constituinte de 1988 e exerceu mandatos de deputado federal por Minas Gerais de 1986 a 2011. Articulista regular d’O Estado de São Paulo e assina a coluna de politica internacional dos Jornais Correio Braziliense e O Estado de Minas. É colaborador do Capital Político.