Está lá na página 74: “os preços praticados pela Petrobras deverão seguir os mercados internacionais…”. Na página 10, outra garantia: “faremos uma aliança da ordem com o progresso, um governo liberal democrata”. No caput, o compromisso com um “governo decente…sem toma lá-dá-cá, sem acordos espúrios”. Nada mais didático do que a leitura do plano de governo registrado no TSE em 2018 pelo candidato Jair Bolsonaro. No cotejamento da realidade com a ficção de 81 páginas, sob o título “O caminho da prosperidade”, tem-se a comprovação do maior estelionato eleitoral já cometido no país. A materialização da fraude.
Bolsonaro não é o primeiro a descumprir promessas de campanha ou praticar o inverso dos ditos preconizados nos palanques. Eleitores de Lula consideravam que ele havia traído a esquerda ao abraçar a política de equilíbrio fiscal do antecessor Fernando Henrique Cardoso. Mas nunca antes se viu tamanho fosso entre uma proposta de governo e sua execução.
Os eixos do plano – “Constitucional, Eficiente, Fraterno” – já apontam o tamanho do engodo. Com mais da metade do mandato executado, Bolsonaro é exatamente o avesso do que, oficialmente, documentou em seu plano. Instalou e mantém um governo reconhecidamente belicoso, que desafia as leis, e tem eficiência abaixo de zero.
Certo de que seus fiéis não iam se dar ao trabalho de ler um programa de governo, ele tascou na página 7 a defesa de uma “imprensa livre e independente”. O oposto da pregação cotidiana que faz contra jornais e jornalistas. Na 24 chega a usar a credibilidade da arqui-inimiga TV Globo para expor os números da violência no país e, em seguida, defender as armas de fogo.
A ampliação do número de armas nas mãos de civis é um dos raríssimos itens em que Bolsonaro colocou vigor, ainda assim com decretos sujeitos a debates de constitucionalidade. Sua proposta de governo contemplava ainda a reforma da Previdência, que, mesmo com ele jogando contra, foi aprovada graças ao empenho e obstinação do então presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ).
O resto do plano é pura enganação, embuste mal ajambrado para cumprir tabela.
É quase inimaginável que a elite econômica do país tenha se embevecido com os chavões liberais do plano que previa redução do Estado, enxugamento da máquina, menos burocracia e racionalidade tributária, equilíbrio fiscal e privatizações em escala.
E não adianta usar a pandemia como desculpa, pois mesmo antes dela nada tinha sido feito na direção prometida.
No caso específico da Petrobras, que na sexta-feira amargou perdas de R$ 28 bilhões só com a ameaça intervencionista – antes mesmo do anúncio da substituição de Roberto Castello Branco pelo general da reserva Joaquim Silva e Luna -, Bolsonaro, via Paulo Guedes, havia acalentado a cantilena de que a petroleira venderia “parcela substancial de sua capacidade de refino, varejo, transporte e outras atividades onde tenha poder de mercado”. E que as empresas dependentes do governo seriam privatizadas ou fechadas.
Dois anos e dois meses se passaram e pouco ou quase nada foi privatizado. As estatais continuam firmes, mamando o quanto podem e servindo de moeda de troca para satisfazer os “novos” parceiros políticos do presidente. Até a EBC, gestora da TV Brasil, que Bolsonaro acusava ser canal de propaganda do PT, foi preservada e capitalizada. De TV Lula virou TV Bolsonaro.
Como de costume, Bolsonaro e os seus, incluindo Guedes, terceirizam culpas. Apontam o dedo para o Congresso cujo erro imputado só pode ser o de não aprovar projetos que o governo não enviou.
Isso vale para a venda de estatais e para as reformas estruturais. A reforma tributária proposta por Guedes se limita à fusão de dois impostos federais, o que, no frigir dos ovos, nada muda na barafunda dos tributos nacionais. Na administrativa, o governo, covarde, joga toda e qualquer mexida das castas do funcionalismo para o futuro, deixando intocados os que mais consomem dinheiro do contribuinte.
Batendo no peito, o novo presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL) dirá que aprovou em tempo recorde a autonomia do Banco Central. Uma meia verdade. O projeto já havia percorrido todos os trâmites do Parlamento e foi usado como alegada prova de competência depois do escancarado toma lá, dá cá – prática execrada na campanha de Bolsonaro – para garantir a eleição de Lira.
A lambança que Bolsonaro fez com a Petrobras enterrou de vez qualquer tentativa de dourar pílulas.
Mais do que uma comissão especial para regulamentar o artigo constitucional relativo ao flagrante de parlamentares, anunciada por Lira antes da votação que manteve a prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), o país precisa rever as hipóteses de impedimento de um governante. Traição frontal ao eleitor tal como a praticada por Bolsonaro deveria ser uma delas.
Mary Zaidan é jornalista