O presidente Jair Bolsonaro tem explicitado, de maneira clara e cristalina, a intenção de implodir a democracia brasileira. Esse é o sentido da frase “só Deus me tira da presidência” e da ameaça de “tomar medidas drásticas” porque “estão esticando a corda demais”. A cantilena autoritária o leva a tratar as Forças Armadas como “meu exército”, como se elas deixassem de ser instituições de Estado para se transformar em sua guarda pretoriana, leais não à Constituição, mas a ele.
O presidente segue o método de vociferar em uma direção e não desistir de seu intento até conseguir seu objetivo. Pode, no meio do percurso, fazer movimentos ziguezagueantes, com idas e vindas, mas sempre retorna ao rumo para alcançar sua meta. Deixa no ar que não titubearia em adotar medidas extraconstitucionais. Se Donald Trump enveredou por esse caminho na democracia mais consolidada do planeta por que Bolsonaro não iria seguir a mesma trilha?
A escalada da pregação antidemocrática é consequência do aprofundamento do seu isolamento em decorrência de ter perdido a narrativa da pandemia. O coronavírus, como era previsível, reduziu a pó sua estratégia de negar a dura realidade que o Brasil enfrenta. O chão começa a faltar a seus pés.
Não sem razão fez pronunciamento à nação no horário nobre desta 3ª feira. O tom pretensamente contido e ponderado não disfarçou a distorção dos fatos e a omissão de informações.
O mundo da produção e os agentes econômicos começam a lhe dar as costas. Reflexo disso são os movimentos que surgiram nos últimos dias.
Um manifesto com 1.500 assinaturas de empresários, banqueiros e economistas, alguns dos quais ex-presidentes do Banco Central, é a maior evidência de que parte substantiva do PIB brasileiro repudia sua política negacionista e exige a adoção de outra, pautada na ciência e focada na vacinação em massa.
Outras duas iniciativas mostram que importantes formadores de opinião estão procurando alternativas às preconizadas pelo presidente. Empresários liderados por Luiza Trajano, proprietária do Magazine Luiza (Magalu) vão ao Congresso para viabilizar a adoção da renda-básica e a aprovação das reformas estruturantes. Nessa 2ª feira outro grupo composto pela fina-flor do PIB se reuniu com os presidentes do Senado e da Câmara Federal. Estes empresários e banqueiros se dispõem a assumir protagonismo na aquisição de vacinas, de novos leitos de UTIs e na oferta de insumos médicos.
Em condições normais de temperatura e pressão seria natural que batessem à porta do Executivo e não do Parlamento, como vem acontecendo. Não apenas empresários, mas governadores e prefeitos também veem no Poder Legislativo a possibilidade de responder ao vácuo de poder gerado pelo presidente. Os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e sobretudo do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), têm sido o ponto de equilíbrio e de ponderação em um momento em que a união nacional é condição básica para o Brasil vencer a guerra contra a pandemia.
Em um regime presidencialista esse papel cabe ao Poder Executivo, mas a vocação de Bolsonaro de disseminar dissensos e sua obstinação pela anti-ciência vem gerando uma dualidade de poder. Lira e Pacheco dão sinais de descrença da capacidade do chefe da nação liderar o país no momento mais trágico de nossa história.
Mas eles não têm a caneta e muitos menos o poder de nomear e demitir. E continuam nas mãos do governo, o que gera uma contradição entre o poder real e o poder formal, no tocante à pandemia.
Dualidade de poder é por si mesmo um fator de instabilidade e rupturas. Ela não pode existir por períodos mais longos. O risco é Bolsonaro tentar resolvê-la ao modo de “medidas drásticas”, como Estado de Sítio, que ele tanto tem falado nos últimos dias.
O presidente está acuado ainda por outros dois fatores. De um lado, a fase de lua de mel com o Centrão chegou ao fim e, por outro, o centro e a esquerda começam a estabelecer pontes entre si com vistas a uma atuação articulada. Não é possível ainda especular se o namoro se limitará apenas ao enfrentamento ao negacionismo ou se terá desdobramentos em um horizonte de médio prazo. Mas desde já é mais um fator que indica o isolamento de Bolsonaro.
Sim, as instituições brasileiras têm demonstrado resiliência e bloqueado o golpismo pregado pelo presidente. Certamente, se ele tentar decretar Estado de Sítio, o Congresso o rejeitará, assim como rejeitou em outubro de 1963, quando o então presidente João Goulart baixou a medida. Goulart aceitou a decisão soberana do Parlamento. Bolsonaro faria o mesmo, na hipótese de ter um pedido rejeitado?
Também não é crível que o alto comando das Forças Armadas embarque numa aventura. Ao contrário, já se percebe o profundo incômodo na cadeia de comando com a distorção do papel das instituições militares. Mas, constantemente, Bolsonaro tem feito proselitismo político nos quartéis. Seu discurso encontra guarida na baixa oficialidade. Está aí o germe de um conflito entre a cadeia de comando e sua base. No passado esse conflito levou a quebra da disciplina e a anarquia. Podemos ter o tenentismo revivido.
O presidente tem atuado no limite da legalidade. A dúvida é se ele ultrapassará esse limite, estimulando seus brigadistas a realizar atos de provocação que justifiquem a decretação do Estado de Sítio com o argumento da “convulsão social”. Não seria a primeira vez na história. Para invadir a Polônia, Hitler simulou um ataque polonês a um posto de comando alemão na fronteira dos dois países.
Não há espaço para a ingenuidade. Não dá para ignorar que Bolsonaro conspira, a céu aberto, contra o Estado de Direito Democrático.
Hubert Alquéres é membro da Academia Paulista de Educação. Escreve às 4as feiras no blog do Noblat