Editorial de O Estado de S. Paulo
No mundo inteiro a pandemia precipitou uma crise sem precedentes na educação. O apagão acarretou perdas expressivas de aprendizagem, aumentou as desigualdades e ampliou os riscos de evasão escolar. Mas, por causa da assombrosa desídia do governo federal, a educação no Brasil vive uma crise dentro da crise. Ou melhor: já vivia uma crise endógena que foi agravada por uma crise exógena.
A mera dança das cadeiras no MEC é sintoma suficiente dessa incúria. Antes do atual ministro, Milton Ribeiro, que desde julho não mostrou a que veio, a pasta foi comandada três meses pelo inoperante Vélez Rodríguez; depois um ano e dois meses por Abraham Weintraub, que nada mais fez que reduzir o MEC a uma casamata para guerrilheiros culturais bolsonaristas; e alguns dias por Carlos Decotelli, que se notabilizou pelas fraudes em seu currículo acadêmico.
“Com relação ao MEC, além da ausência de coordenação nacional, cuja responsabilidade é do governo federal, o ano de 2020 reforçou a imagem de um ministério sem capacidade de liderança e com sérios problemas de gestão”, concluiu um balanço do instituto Todos Pela Educação. Nada ilustra mais essa inépcia que o desempenho na educação básica. Reiteradas vezes, até colidirem com a lei, o presidente Jair Bolsonaro e seu sabujo Abraham Weintraub ameaçaram sabotar o ensino universitário – em especial as Humanidades –, sob o pretexto de priorizar a educação básica. Se esse antagonismo espúrio entre ensino básico e superior já não demonstrasse uma concepção suficientemente tacanha da educação, o balanço prova que ela é também hipócrita. A educação básica encerrou o ano de 2020 com o menor orçamento e a menor execução da década.
A contração não pode ser atribuída exclusivamente à crise. Entre 2010 e 2018 (incluindo, portanto, os anos de recessão), a dotação anual média para a educação básica foi de R$ 52,2 bilhões. Nos dois anos de Bolsonaro, foi de R$ 45,2 bilhões. O desempenho da educação básica em 2020, tanto na comparação com outras etapas quanto com anos anteriores, foi muito aquém do esperado: dentre todas as etapas, as despesas discricionárias com o ensino básico obtiveram a menor taxa de pagamento (47%); a dotação das emendas parlamentares acumulou redução de 40%; e, das despesas obrigatórias, 81% foram executados, ante 86% em 2019, 95% em 2018 e 92% em 2017.
Em razão da baixa execução orçamentária iniciada no primeiro ano do governo, 2020 foi marcado pelo financiamento excessivo de restos a pagar, dificultando a execução subnacional pela falta de previsibilidade dos recursos recebidos.
A “síntese da pasta”, segundo o Todos Pela Educação, é de “inação, baixa execução orçamentária e fragilidades na governança e na pactuação com Estados e municípios, trazendo prejuízos incalculáveis a curto, médio e longo prazos para a melhoria da qualidade da educação básica”.
Além da anomia na provisão do ensino remoto e no planejamento do retorno às aulas, o governo federal ainda vetou trechos da MP 934/20 que previam o repasse de recursos da merenda diretamente aos pais e deixou à deriva reformas como a implementação da Base Nacional Curricular Comum, o Novo Ensino Médio e medidas voltadas à profissionalização de carreira e formação docente. Numa lista de 34 prioridades apresentadas pelo governo ao Congresso, apenas uma diz respeito à educação, tratando da pauta absolutamente irrelevante da regulamentação do homeschooling.
O quadro em 2020 só não foi pior por causa da ação de prefeituras, governos estaduais, entidades representativas e do Congresso, responsáveis por avanços importantes, como a aprovação do Novo Fundeb.
Se, no campo educacional, um voto de confiança no início da gestão Bolsonaro era uma ingenuidade culposa, condescender dois anos depois com essa ilusão já caracteriza uma atitude dolosa. Mais do que nunca, garantir o avanço da educação – ou, ao menos, conter a sua deterioração – dependerá do protagonismo enérgico da sociedade civil, dos governos subnacionais e principalmente do Congresso.