Editorial de O Estado de S. Paulo (11/12/2020)
Na superfície, foi apenas a demissão de mais um ministro irrelevante, o 12.º a cair em menos de dois anos. Mas a saída de Marcelo Álvaro Antônio do Ministério do Turismo depois que este denunciou as movimentações palacianas para saciar o apetite do Centrão deu o tom do envolvimento do presidente Jair Bolsonaro na sucessão da presidência da Câmara, muito mais profundo do que recomenda a prudência.
O ministro caiu depois que se tornou público o teor de uma mensagem postada por ele no grupo de WhatsApp de colegas de Esplanada com pesadas críticas ao ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos. Álvaro Antônio acusou o ministro Ramos de se dedicar à negociação de cargos do primeiro escalão com o Centrão para arregimentar apoio ao candidato governista à presidência da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL). Um desses cargos seria justamente o de ministro do Turismo, o que enfureceu Álvaro Antônio e o motivou a chamar o colega Luiz Eduardo Ramos de “traíra”.
Depois de dizer que conhece bem o Congresso, pois é deputado pelo PSL-MG, criticou o ministro Ramos por entrar no gabinete do presidente Jair Bolsonaro “comemorando algumas aprovações insignificantes no Congresso, mas não diz o altíssimo preço que tem custado” – em referência à oferta de cargos no governo em troca de votos. O agora ex-ministro Álvaro Antônio escreveu que, apesar dessas negociações – que se deram num volume “nunca antes visto na história”, segundo ele –, o governo “ainda assim” não conseguiu formar “uma base sólida no Congresso Nacional”. Tanto é assim, segue a mensagem, “que o senhor (ministro Ramos) pede minha cabeça para tentar resolver as eleições do Parlamento”, ou seja, “pede minha cabeça para suprir sua própria deficiência”.
As “eleições no Parlamento” a que se refere o defenestrado ministro é justamente a disputa pelas presidências da Câmara e do Senado, em fevereiro do ano que vem. A mensagem de Álvaro Antônio, portanto, escancarou o que todos já intuíam: que o presidente Bolsonaro, por meio de seus articuladores políticos, está fazendo de tudo para ter alguma influência sobre o comando do Congresso e jogou suas fichas no deputado Arthur Lira.
A história recente do País mostra que os presidentes que se intrometeram na sucessão do comando do Congresso foram castigados – o caso mais recente, o de Dilma Rousseff, é uma história bastante conhecida e deveria servir como advertência. Aparentemente, contudo, Bolsonaro julga que vale a pena correr o risco, por motivos evidentes por si mesmos: incapaz de organizar uma base sólida seja para governar, seja para sobreviver no cargo, depende cada vez mais dos humores do Centrão, razão pela qual amalgamou seu governo a esse bloco fisiológico a ponto de praticamente tornarem-se indissociáveis – a corda e a caçamba.
É claro que o governo Bolsonaro, no discurso, vai tentar confundir sua rendição total ao Centrão com o interesse nacional. No Ministério da Economia, por exemplo, já se diz que o deputado Arthur Lira merece o apoio de Bolsonaro porque estaria mais alinhado à agenda de reformas, conforme promessas do candidato. Essa versão vale tanto quanto uma nota de três reais.
Em primeiro lugar, o deputado Arthur Lira tem histórico de defesa do aumento de gastos públicos e votou a favor da retirada de Estados e municípios da reforma da Previdência. Como “reformista”, portanto, é cristão-novo: converteu-se ao discurso das reformas, mas nada garante que tenha renunciado à antiga fé na gastança.
Em segundo lugar, se o presidente Bolsonaro estivesse mesmo tão engajado nas reformas teria aproveitado o clima reformista da Câmara sob a presidência de Rodrigo Maia e encaminhado todos os projetos que prometeu na campanha eleitoral. O que se viu, contudo, foi um excruciante atraso, que muitos atribuíram à falta de articulação política do governo, mas que, hoje está claro, se deve muito mais ao desdém com que Bolsonaro trata as reformas.
O discurso de respeito aos interesses do País na sucessão do comando do Congresso, portanto, é apenas pretexto para que Bolsonaro e o Centrão cuidem de suas conveniências particulares, para surpresa de ninguém.